quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

CONTRATO "DE GAVETA"

RESCISÃO CONTRATUAL - Compromisso de compra e venda de imóvel. Contrato "de gaveta". Cadeia de cessionários/cedentes. Última cessionária que descumpriu a obrigação de pagar as parcelas do financiamento. Prejuízo aos cedentes originários, que sofreram restrições ao seu crédito. Sentença. Ilegitimidade da ré, que não celebrou contrato com os autores. Extinção. Art. 267, VI, do CPC. Descabimento. Legitimidade. A sub-rogação da última cessionária nos direitos e obrigações relativos à cessão dos direitos de aquisição de bem imóvel autoriza a propositura de ação rescisória contra si pelos cedentes originários. Rescisão cabível. Descumprimento contratual. Perdas e danos, consistente na devolução dos valores pagos pelos autores. Dano moral indevido. Percalços que não são indenizáveis. Recurso provido em parte (TJSP - 4ª Câm. de Direito Privado; ACi nº 170.524-4/2-00-Araçatuba-SP; Rel. Des. Teixeira Leite; j. 29/3/2007; v.u.).


  ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes Autos de Apelação Cível nº 170.524-4/ 2-00, da Comarca de Araçatuba, em que figuram como apelantes A.R.S. e P.G.R.S. e apelada L.A.C.,
Acordam, em Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, dar provimento em parte ao Recurso.
O D. Magistrado de Primeira Instância, na r. sentença de fls. 162/165, e cujo Relatório se adota, extinguiu a Ação Rescisória cumulada com perdas e danos ajuizada pelos apelantes contra a apelada sem exame do mérito, ao argumento de que a apelada, cessionária dos direitos de aquisição de imóvel residencial, é parte ilegítima para o pedido de rescisão de contrato formulado pelos cedentes, uma vez que ela não faz parte da relação contratual.
Os apelantes (fls. 167/170) alegam que a apelada, na qualidade de cessionária do compromisso de compra e venda de bem imóvel, sub-rogou-se em todos os direitos e obrigações, sendo parte legítima para a pretensão rescisória e indenizatória, já que descumpriu as obrigações assumidas por meio da cessão, acarretando inúmeros transtornos aos apelantes, que eram constantemente instados pela mutuante a saldar o débito existente, tendo, inclusive, o apelante A. sido inscrito no rol de devedores do SCPC. Pedem, pois, a reforma da sentença, julgando-se procedente a Ação.
Resposta da apelada às fls. 173/177.
É o relatório.
  VOTO
Os apelantes, em 20/9/1982, por meio de contrato com financiamento bancário, a ser pago em 240 prestações (fls. 14/20), adquiriram bem imóvel. Em 15/12/1982, por meio de instrumento particular sem anuência da instituição financeira mutuante, cederam onerosamente seus direitos de aquisição a M.C.S. e L.P.S., que se sub-rogaram nas obrigações decorrentes do financiamento. Estes, por sua vez, em 19/1/1984, cederam novamente tais direitos e obrigações de aquisição a J.A.B. e I.R.N.B., que, por fim, em 3/2/1984, cederam a L.A.C., ora apelada, que deixou de pagar as prestações do financiamento daí acarretando danos e prejuízos aos mutuários, ora apelantes.
Com isso, ajuizaram ação contra a apelada, buscando a rescisão do contrato de cessão, por entender que ela está sub-rogada em todos os direitos e obrigações, bem como indenização por danos materiais, referentes às parcelas do financiamento e de IPTU pagas pelos apelantes após a cessão, e danos morais.
O MM. Juiz julgou extinta a Ação, sem julgamento do mérito, ao argumento de que não existe contrato celebrado entre apelantes e apelada, entendendo, portanto, ser ela parte ilegítima para figurar no pólo passivo da Ação. Todavia, desta feita, a nosso ver, não andou, com o acerto que lhe é peculiar, impondo-se a reforma da r. sentença, para julgar procedente a Ação (art. 515, § 3º, CPC).
Trata-se de sucessivos "contratos de gaveta", "designação atribuída aos negócios jurídicos de promessa de compra e venda de imóvel realizados sem o consentimento da instituição de crédito que financiou a aquisição" (Min. Ari Pargendler, STJ, REsp nº 119.466-MG, 3ª T., j. 4/5/2000).
E, conquanto que, de fato, apelantes e apelada não tenham diretamente celebrado contrato de cessão de direitos, o instrumento particular, assinado por todos da cadeia de cedentes e cessionários, transfere ao último todos os direitos e obrigações como se tivesse contratado diretamente com os cedentes originários, ora apelantes. Tal interpretação está respaldada na menção contratual expressa de que os cessionários sub-rogam-se no dever de adimplir o débito hipotecário e demais obrigações decorrentes do financiamento acima citado.
Assim, o inadimplemento da apelada quanto ao pagamento das parcelas do financiamento caracteriza infração contratual que autoriza a rescisão pleiteada pelos apelantes, prejudicados pelo inadimplemento, porque são eles que suportam a cobrança do débito pela instituição financeira mutuante e a inscrição no rol de devedores dos órgãos de proteção ao crédito.
A decisão proferida pelo D. Magistrado, com a devida vênia, não resolve de forma satisfatória o problema vivenciado pelos apelantes, porquanto a manutenção do contrato de cessão de direitos, ainda que inadimplente a apelada, impede que eles possam regularizar a situação do imóvel perante a instituição financeira mutuante, locupletando-se indevidamente a apelada que vive em imóvel, sem pagar as respectivas contraprestações do financiamento e sem suportar os inconvenientes da cobrança da dívida.
Anota-se que o inadimplemento da apelada quanto ao pagamento das parcelas do financiamento é incontroverso, porquanto, ao contrário do que sustenta, aos apelantes cabe alegar o inadimplemento e a ela demonstrar o pagamento (art. 333, II, do CPC), ou seja, que está honrado com as obrigações assumidas, mediante prova eminentemente documental, que dispensa dilação probatória.
No caso, junta apenas três comprovantes simples de depósito bancário (fls. 141-142), supostamente relativos às parcelas vencidas em dezembro/1996 e janeiro e fevereiro/1997, que são insuficientes a afastar o débito apontado pelos apelantes junto     à     mutuante.  

Alega     que    "não encontrou" os demais comprovantes, o que, processualmente, não se pode admitir. Conquanto seja crível a alegação de que se encontra em situação econômica difícil, tal argumento, além de corroborar a tese do inadimplemento, não é juridicamente apto a afastá-la das conseqüências do descumprimento das obrigações assumidas com o contrato de cessão de direitos perante os apelantes.
Decidida, pois, a possibilidade da rescisão, resta a pretensão indenizatória, que também é cabível, porquanto é regra geral de direito das obrigações, que o descumprimento da obrigação pactuada traz ao devedor a responsabilidade pelo pagamento de perdas e danos, acrescidos dos consectários legais.
Os danos materiais correspondem aos valores pagos pelos apelantes em lugar da apelada, relativos a algumas parcelas do financiamento, bem como de IPTU, não por mera liberalidade, mas na tentativa de se livrar das conseqüências do inadimplemento. Assim, apurar-se-á em fase de liquidação, mediante a devida comprovação, todos os valores desembolsados pelos apelantes para pagamento das despesas relativas ao imóvel objeto do contrato, cuja obrigação de pagar era da apelada.
Decisões semelhantes têm sido adotadas por nossos Tribunais:
"Anulatória. Financiamento imobiliário. 'Contrato de gaveta'. Transferência não concretizada. Pagamentos não realizados. Inteligência do art. 475 do Código Civil. Recurso improvido. O art. 475 do NCC é claro ao preconizar que a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato ou exigir o seu cumprimento, cabendo-lhe indenização por perdas e danos. Assim, se o cessionário não cumpre as obrigações que lhe competem, deixando de transferir o financiamento e honrar o pagamento das prestações junto ao agente financeiro, a regra contida no dispositivo em evidência permite que o cedente opte pela resolução do contrato e pleiteie perdas e danos, que, na hipótese, mostram-se evidentes" (TJMG - 2.0000.00.495659-8/000(1), Rel. Tarcísio Martins Costa, j. 5/9/2006).
"Ação de Rescisão de Contrato e Reintegração de Posse. 'Contrato de gaveta'. Sistema Financeiro da Habitação. Inadimplência do promitente-comprador. Inserção do nome do promitente-vendedor nos cadastros negativos. Danos materiais e morais. Cabimento. Liquidação por arbitramento. O contrato particular de compra e venda de imóvel financiado com garantia hipotecária, mesmo sem a intervenção do agente financeiro, é válido, mas vincula e produz efeitos jurídicos tão-somente entre as partes contratantes. Rescindido o contrato pelo inadimplemento do promitente-comprador, surge a obrigação de indenizar as perdas sofridas pelo promitente-vendedor, em decorrência da privação da posse do imóvel e do acréscimo do débito financiado pela Caixa Econômica Federal, o que pode ser feito em liquidação por arbitramento" (TJMG - 2.0000.00.479791-1/000(1), Rel. Elias Camilo, j. 6/4/2006).
Indefere-se, todavia, o pedido indenizatório a título de danos morais.
Ainda que verossímil a alegação dos apelantes de que suportaram inúmeros transtornos, inclusive a inclusão de seus nomes nos cadastros de devedores, não há notícia de que tais restrições tenham repercutido de forma negativa em suas vidas. Como se sabe, a indenização se mede pela extensão do dano, e não comprovada a ocorrência de dano juridicamente relevante, não há que se falar em indenização por dano moral.
Entende esta Câmara que o dano moral indenizável não é o pequeno percalço, de menor proporção, fato do qual se possa extrair ofensa aos sentimentos ou ao espírito do homem. Considerando a organização da sociedade, a experiência de vida de cada um ou o ambiente a que estamos expostos, desenvolvemos com maior ou menor eficácia uma estrutura psicológica que permite lidar com os obstáculos e contrariedades a que certamente estamos sujeitos.
O dano moral cuja indenização a lei prevê é aquele que ultrapassa, pela sua intensidade, repercussão e duração, aquilo que o homem médio, de estrutura psicológica normal, estaria obrigado a suportar.
Ademais, não se cogita de dolo da apelada, a ponto de se lhe aplicar condenação com finalidade inibitória. Pelo que se depreende dos Autos, decorreu o inadimplemento de absoluta impossibilidade econômica de honrar as obrigações assumidas. Se assim não fosse, não teria se sujeitado a perder o imóvel que lhe servia de residência. Vê-se do edital acostado pelos apelantes à réplica, que o imóvel já foi levado à hasta pública pela instituição mutuante.
Ante o exposto, dá-se provimento em parte ao Recurso, para, declarando rescindido o contrato de cessão de direitos sobre promessa de compra e venda, do imóvel localizado na Rua ..., cidade de ..., condenar a apelada ao pagamento de indenização por danos materiais, consistente no reembolso aos apelantes de todos os valores por eles pagos após a cessão dos direitos, acrescidos de juros legais e correção monetária, desde os respectivos desembolsos, mais honorários advocatícios de 20% (vinte por cento) sobre o valor total da condenação, a ser apurado em fase de liquidação.
Participaram do julgamento os Desembargadores Maia da Cunha (Presidente, sem voto), Fábio Quadros e Natan Zelinschi.
São Paulo, 29 de março de 2007
Teixeira Leite
Relator

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