sábado, 31 de dezembro de 2011

OS DIREITOS DO NASCITURO

Quando o Código Civil de 2002 estabelece, logo no artigo primeiro, que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, ele mantém a norma contida no artigo segundo do Código Civil de 1916. Substitui, porém, os termos “homem” por “pessoa” e “obrigações” por “deveres”, antes adotados, o que faz acertadamente, especialmente quanto ao primeiro vocábulo, cujo sentido é extensivo às pessoas jurídicas e outras entidades.

Até aí nenhuma novidade. Emerge, entretanto, questão interessante, que transcende o campo do direito, ao afirmar, em seguida, o legislador, no artigo segundo, que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. E não é difícil perceber que a razão principal do interesse na questão em apreço reside na distinção estabelecida entre o ser incapaz, que ainda se encontra no ventre da mãe, chamado de nascituro, e o ser capaz que vem ao mundo exterior com vida, ou, em outras palavras, que sobrevive ao parto e é agraciado com a personalidade civil.

É certo que nascer vivo tem vários significados alinhados com o sentido dado pelo Código Civil. Entre eles, destacamos: vir ao mundo; vir à luz; começar a ter vida exterior. Para efeito de lavratura do respectivo assento no Registro Civil das Pessoas Naturais, a lei 6.015, de 1973, no parágrafo segundo do artigo 53, considera o nascimento com vida a partir do momento em que, realizado o parto, o ser gerado passa a respirar por conta própria.

Pondere-se, contudo, que princípio ou origem também é definição lógica de nascer, afinada, perfeitamente, com a tese, aceita em todos os campos do conhecimento, de que a vida começa da concepção e o feto já é um ser humano, ou, em outras palavras, uma pessoa, ainda que em fase de gestação. Aliás, a própria lei aceita como verdadeira, embora relutantemente, a apontada tese, quando admite, implicitamente, no citado artigo segundo, que a existência da pessoa precede a concessão da personalidade civil.

É aceitável, sem dúvida, a justificativa de que a distinção em apreço é estabelecida pelo direito civil com a finalidade precípua de definir direitos relacionados com bens materiais, exteriores ao mundo no qual está encerrado o nascituro. 

Assim acontece, por exemplo, quando o Código Civil prescreve, no artigo 542, que a doação feita a nascituro valerá, sendo aceita por seu representante legal, mas, sob condição suspensiva, de acordo com a doutrina, como informa Jones Figueiredo Alves, integrante da equipe que organizou a obra Novo Código Civil Comentado, publicada pela Editora Saraiva, em 2002, sob coordenação de Ricardo Fiúza, que foi o relator do projeto da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Isso significa que a validade da liberalidade está condicionada ao nascimento com vida do donatário. Se nascer morto, caducará.

O mesmo ocorre quando o legislador cuida da vocação hereditária, dispondo, no artigo 1.798, que se legitimam a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Curiosamente, também aqui o legislador não faz nenhuma distinção entre pessoa nascida e pessoa já concebida, mas, drasticamente, anula o direito do nascituro se não adquirir a personalidade civil, ou seja, se não sobreviver ao parto e não estiver vivo no momento da abertura da sucessão, como consta do artigo 1.799, inciso I.

Seguindo a mesma linha e confirmando o enunciado, acrescenta o parágrafo terceiro do artigo 1.800 que, nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador. Claro está, no teor desse dispositivo legal, que o direito do nascituro foi preservado desde a morte do testador, mas somente lhe será deferida a sucessão e atribuídos, conseqüentemente, os frutos e rendimentos dela decorrentes, se nascer com vida.

A propósito, Zeno Veloso, Professor de Direito Civil na Universidade Federal do Pará e de Direito Civil e Direito Constitucional Aplicado na Universidade da Amazônia, ao comentar o artigo 1.798 (p. 1612), na mesma obra, o Novo Código Civil Comentado,  afirma que:

“O herdeiro, até por imperativo lógico, precisa existir quando morre o hereditando, tem de sobreviver ao falecido”.

E acrescenta tratar-se de princípio adotado na generalidade das legislações, citando, como exemplos, os códigos civis francês, italiano, português, suíço, chileno, argentino e mexicano.

Como se observa, os direitos do nascituro à doação e à herança, assim como a aquisição de sua personalidade civil, estão subordinados a uma condição de natureza suspensiva, o que nos leva a outras considerações.

Para a personalidade, atributo natural de cada pessoa, existem vários sentidos: caráter ou qualidade do que é pessoal; pessoalidade; o que determina a individualidade de uma pessoa moral; o elemento estável da conduta de uma pessoa; sua maneira habitual de ser; aquilo que a distingue de outra; traços típicos, originalidade. Mas, é a psicologia que nos apresenta conceito mais científico. Para ela, personalidade é a organização constituída por todas as características cognitivas, afetivas, volitivas e físicas de um indivíduo.

Ao discorrer sobre os direitos subjetivos, de que o homem é titular, Sílvio Rodrigues, no capítulo III, primeiro volume de sua obra “Direito Civil” (parte geral), 34.ª edição, publicada pela Editora Saraiva, realça aqueles que são inerentes à pessoa humana e, portanto, a ela ligados de maneira perpétua e permanente. E acrescenta “não se podendo conceber um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade física ou intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à sua imagem e àquilo que ele crê ser sua honra”. Tais são, no entender do autor, os chamados direitos da personalidade, que saem da órbita patrimonial e são intransmissíveis, imprescritíveis e irrenunciáveis.

É, compreensível, pois, haver o atual Código Civil dedicado o capítulo II, composto de 11 artigos sem precedentes no Código anterior, exclusivamente aos direitos da personalidade. Entre eles, citaremos o de número 11, confirmando a lição de Sílvio Rodrigues, segundo o qual: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.

Considerando os argumentos insertos na exposição até aqui feita, podemos dizer que o nascituro possui personalidade? Há quem negue peremptoriamente com apoio no entendimento de que somos produto do meio, ou seja, do lugar onde vivemos, de nosso lar, de nossa educação, formação religiosa, convivência com familiares e amigos, papel exercido na sociedade, etc. Esquecem, porém, os que assim pensam, que o meio não é o único fator importante no condicionamento do indivíduo. Existe outro, fundamental na formação física e mental, que é a herança genética de cada um. É admissível, assim, que o nascituro já tenha personalidade, embora em gestação, como ele próprio. Incorre, aliás, em sério equívoco quem imaginar que a personalidade já se encontra formada no momento do nascimento da pessoa. Por muitos anos, ela ainda vai se desenvolver, seguindo as tendências determinadas pela combinação de genes legados por seus ancestrais e sob influência do meio.    

Personalidade civil é outra coisa. Não se confunde, portanto, com atributo natural inerente ao ser humano ou com caráter, qualidade pessoal.  Ela, a civil, é sem dúvida, um direito de toda pessoa, quando nasce com vida, mas não deixa de ser uma atribuição conferida por lei, porque assim determina a lógica da ordem jurídica. Podemos conceituá-la como aptidão ou capacidade para exercer direitos e contrair obrigações. Isso significa que, mal nascida, a pessoa natural já é considerada capaz de direitos e deveres, como consta do artigo primeiro do Código Civil, apesar de não ter a mínima noção deles e, muito menos, condição de administrá-los. Tentando atenuar a contradição observada, esclarece o legislador, no artigo terceiro, que são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos e os deficientes mentais que não puderem exprimir a sua vontade.

A análise, despida da lógica jurídica, desse ponto, nos leva à convicção de que a personalidade civil, da qual decorre a capacidade para gerir direitos e deveres, a rigor, também evolui, uma vez que a pessoa natural vai adquirir consciência deles gradativamente até completar a maioridade, quando, então, torna-se realmente capaz, libertando-se da representação ou assistência dos pais.

E agora? É justo negar ao nascituro direito à personalidade civil? Por quê?  Porque não tem nome? Qual a razão de lhe atribuirmos direitos objetivos a bens materiais, impondo, como condição, que nasça com vida, sob pena de os retirarmos? Há diferença significativa entre os direitos do feto e os concedidos a uma criança que nasceu, viveu algumas horas e veio a falecer? Como seria se não fosse retirado o direito à sucessão do ser no ventre da mãe, que sobreviveu ao autor da herança, mas não chegou a ver a luz do dia? 

Vejamos até onde nos leva essa especulação: imaginemos uma senhora, com três filhos, grávida de nove meses, que começa a sentir os primeiros sinais do parto. Seu marido, ansioso, nervoso, apressado, coloca-a no carro e sai em disparada. Chove muito e sua visão está prejudicada. Ao fazer uma curva, o carro derrapa e choca-se violentamente com um muro. Um motorista vê o acidente, pára e chama o resgate. O marido está morto e a mulher falece ao dar entrada no hospital. A hora de sua morte é registrada. Por um milagre, a criança ainda vive. Seu coração, enfraquecido, ainda bate. Os médicos fazem uma cesariana, mas, em virtude da demora, não conseguem retirá-la com vida.

A situação é triste. O casal morto deixou três filhos menores, que, provavelmente, irão viver com os avós maternos, ainda vivos. De acordo com o nosso direito, eles, os filhos vivos, herdarão todos os bens de seus pais, na proporção de um terço para cada um, negando-se acesso à herança do nascituro, porque veio morto ao mundo e não adquiriu personalidade civil.

Embora seja fruto da imaginação, o caso relatado foi aqui colocado apenas com a finalidade de ilustrar a matéria focalizada, não sendo, todavia, impossível a ocorrência de situações reais semelhantes.

Suponhamos, agora, apenas para exercitar a imaginação, que os fatos narrados aconteceram em um país no qual os nascituros são considerados capazes de herdar, como aqui, mas lá a lei não lhes impõe a condição suspensiva que condiciona a atribuição dos bens herdados ao nascimento com vida. Também lá, como aqui (ver art. 1.788 e 1.784 do atual Código Civil), a sucessão é aberta no exato momento do falecimento do autor da herança, a qual é, desde logo, transmitida aos herdeiros. Assim supondo, os bens do casal seriam atribuídos aos quatro filhos, três vivos e um morto, na proporção de um quarto para cada um, a este último porque sobreviveu ao óbito da mãe. Mas, o caso não se encerraria aí, em face da abertura de outra sucessão, ou seja, da criança nascida morta. Para quem iria a sua quarta parte nos bens do casal falecido? Seus três irmãos?  Não, porque seriam considerados colaterais. Para os seus avós, se ainda vivos? Sim, como herdeiros ascendentes.

Como se vê, as suposições feitas servem para demonstrar que ainda é grande a distância entre as normas que regem os valores naturais e as leis que disciplinam a atividade humana no campo dos bens materiais.


Trabalho elaborado por Ulysses da Silva é membro do Conselho Jurídico Permanente do IRIB.

 

FORMAÇÃO, SUSPENSÃO E EXTINÇÃO DO PROCESSO


            Formação do Processo: O art. 262 do CPC enuncia dois princípios fundamentais do processo civil, quais sejam, princípio da inércia ou demanda e princípio do impulso oficial. Afirma o preceito citado “O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial”.

O princípio da inércia determina que o processo somente pode ser iniciado por provocação da parte, o que implica afirmar que não deve ser deflagrado de ofício pelo juiz. O princípio do impulso oficial, por sua vez, determina que o processo, uma vez ajuizado, será impulsionado por atos do juiz, de ofício ou a pedido da parte. Se, por exemplo, a parte não realizar o ato processual determinado no prazo assinalado, o processo não poderá ficar paralisado, devendo o juiz determinar o prosseguimento do mesmo.
           
O ato por meio do qual a parte dá início ao processo é a entrega da petição inicial ao Poder Judiciário, efetivando-se com o despacho da petição inicial ou pela simples distribuição da mesma, onde houver mais de uma vara.

            LEMBRE-SE: A relação jurídica processual apenas estará completa com a citação válida.

            ATENÇÃO: Apesar da regra do princípio da inércia, a lei prevê alguns processos que podem ser iniciados de ofício pelo juiz, como é o caso, por exemplo, do processo de inventário e do processo de arrecadação de bens que integram a herança jacente.

            Suspensão do Processo: Implica na afirmação de que o processo ficará paralisado temporariamente. O CPC, em seu art. 265, elenca, exemplificativamente, fatos que levam a essa suspensão temporária do processo.

Dessa forma, suspende-se o processo, por exemplo:
            1º) pela morte ou perda da capacidade processual de qualquer das partes, de seu representante legal ou de seu procurador, durante o prazo determinado pelo juiz para que seja sanado o defeito. Em caso de morte de alguma das partes deve ocorrer a sucessão pelo espólio ou herdeiros. Já em caso de falecimento de advogado, ou da perda da capacidade processual, não sendo o vício sanado no prazo determinado, se o defeito ocorrer no pólo ativo, o juiz decretará a nulidade do processo; se a deficiência estiver no pólo passivo, o réu será considerado revel;
            2º) pela convenção das partes, por prazo nunca excedente a seis meses;
            3º) quando for oposta exceção de incompetência do juízo, da câmara ou do tribunal, bem como de suspeição ou impedimento, até que seja proferida decisão nesses autos; e
            4º) quando a sentença de mérito não puder ser proferida senão depois de verificado determinado fato, ou de produzida certa prova, requisitada a outro juízo. O período de suspensão em casos como este nunca poderá exceder a um ano.

            ATENÇÃO: Durante a suspensão do processo fica proibida a prática de qualquer ato processual, salvo aqueles determinados pelo juiz para realização de atos urgentes, com o fim de evitar dano irreparável.

            Extinção do Processo: Estudamos que sempre que alguém pretenda ter um direito seu declarado, constituído, extinguido, modificado ou almeje a prática de atos satisfativos de preservação de seus bens e direitos, poderá socorrer-se ao Poder Judiciário.
           
Os processos de conhecimento somente terminam com a prolação de uma sentença. As sentenças podem ser “definitivas” ou “de mérito” e “meramente terminativas” sem julgamento de mérito.
           
No primeiro caso, ou seja, o das sentenças de mérito, o processo termina com a apreciação da pretensão formulada, seja confirmando aquilo que foi pedido, seja negando.
           
No segundo caso, o das sentenças que extinguem o processo sem julgamento de mérito, o Poder Judiciário, por várias razões, deixa de apreciar a pretensão do autor em face do réu. Aquele processo extinto sem que o mérito tenha sido apreciado não tem o poder de pacificar a questão posta em juízo, é um processo mal sucedido.


            Extinção do processo sem julgamento do mérito: De acordo com o art. 267 do Código de Processo Civil, o processo se extingue sem resolução de mérito:
            1º) quando o juiz indeferir a petição inicial. O juiz pode indeferir a petição inicial que estiver em desacordo com os requisitos previstos no art. 295 do CPC;
            2º) quando o processo ficar parado durante mais de um ano por negligência das partes. Antes que o juiz determine a extinção do processo por esse motivo, deverá mandar intimar pessoalmente o autor para dar feito ao andamento em 48h, sob pena de extinção;
            3º) quando, por não promover os atos e diligências que lhe competir, o autor abandonar a causa por mais de 30 dias. Da mesma forma que no item antecedente, o autor deve ser intimado pessoalmente, neste caso, para realização do ato que deveria ter realizado. No entanto, o processo não será extinto sem que tenha havido prévio requerimento do réu nesse sentido;
            4º) quando se verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo;
            5º) quando o juiz acolher a alegação de perempção, litispendência ou de coisa julgada. A perempção é a perda do direito de ação por aquele que, por três vezes, deu causa à extinção do processo por abandono. Litispendência é a indicação de que já existe um processo idêntico pendente, envolvendo as mesmas partes, expondo a mesma causa de pedir e deduzindo o mesmo pedido. Coisa julgada é a indicação que uma ação idêntica já foi julgada e não pode ser mais modificada, ou seja, transitou em julgado;
            6º) quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual;
            7º) pela convenção de arbitragem. A lei prevê que a causa que for sujeita, por convenção das partes, à decisão de árbitro, exclui o conhecimento da mesma pelo Estado-juiz;
            8º) quando o autor desistir da ação. A desistência da ação tem cunho processual, não atinge o direito material do autor. Dessa forma, a extinção do processo com base na desistência não impede que o autor ajuíze nova ação. Se a desistência for requerida após a resposta do réu, somente será extinto o processo com o consentimento do réu;
            9º) quando a ação for considerada intransmissível por disposição legal. São intransmissíveis as ações personalíssimas, como, por exemplo, ação de divórcio, separação judicial e anulação de casamento. Falecido um dos cônjuges não pode haver a substituição no pólo correspondente pelos herdeiros;
            10º) quando ocorrer confusão entre autor e réu. A confusão é o fenômeno por meio do qual a mesma pessoa passa a ocupar ambos os pólos da demanda. Por exemplo, se pai e filho demandam em uma ação de cobrança, na qual o pai cobra dívida do filho, ocorrerá confusão se, falecendo o pai, o filho for o seu único herdeiro; e
            11º) nos demais casos previstos no Código de Processo Civil. É o caso, por exemplo, do parágrafo único do art. 47, o qual determina a extinção do processo caso o autor não promova a citação de todos os litisconsortes.

            ATENÇÃO: O processo extinto sem julgamento do mérito não faz coisa julgada material, ou seja, o autor não fica impedido de repropor a causa nos termos corretos. Fazem, no entanto, coisa julgada material, a extinção com base na perempção, litispendência e coisa julgada.

            Extinção do processo com julgamento do mérito: De acordo com o art. 269 do CPC, haverá resolução de mérito:
            1º) quando o juiz acolher ou rejeitar o pedido do autor. A doutrina informa que esta é a única forma de extinção do processo que efetivamente aprecia e julga o mérito da causa. Quando o juiz acolher a pretensão do autor, profere sentença de procedência; se não acolher, proferirá sentença de improcedência. As demais hipóteses que passaremos a estudar são de sentenças de mérito impróprias, pois efetivamente não possibilitam o julgamento do mérito da causa;
            2º) quando o réu reconhecer a procedência do pedido. O réu passa a confirmar o direito material do autor, restando ao juiz considerar a procedência do pedido;
            3º) quando as partes transigirem. Neste caso o juiz não irá proferir julgamento, sua sentença apenas homologará o negócio jurídico civil acordado pelas partes. O juiz deve verificar, no entanto, se o acordo foi celebrado conforme os ditames legais e se versa sobre direito disponível;
            4º) quando o juiz pronunciar a decadência ou prescrição. Ambas as situações podem ser reconhecidas de ofício pelo juiz. A decadência e a prescrição são fenômenos que atingem o exercício do direito de ação sobre determinado direito material. De acordo com Carlos Alberto Gonçalves o prazo será prescricional quando previsto na Parte Geral do Código Civil, nos arts. 205 e 206. Já os prazos decadenciais são aqueles estabelecidos como complemento de cada artigo que rege a matéria, tanto na Parte Geral, como na especial; e
            5º) quando o autor renunciar ao direito sobre o que se funda a ação. Esta hipótese é diversa da desistência, pois a desistência tem cunho processual. A renúncia é ato unilateral do autor que atinge o direito material objeto da ação. Somente poderá haver renúncia sobre direito disponível.

TERMO INICIAL DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR NA AÇÃO DE ALIMENTOS E INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE

            Uma verdade que se tem por absoluta é que os alimentos são devidos desde a data da citação, até porque isso é o que está escrito na Lei de Alimentos (LA, 5.578-68, art. 13, § 2º): Em qualquer caso os alimentos fixados retroagem à data da citação. Como há a determinação de incidência dessa lei às ações de separação, de anulação de casamento e às revisionais, em todas as demandas em que há a fixação de verba alimentar, o encargo tem como termo inicial o ato citatório.
            Parece que este é um ponto que ninguém questiona: alimentos são devidos desde o momento em que o réu foi citado para a ação. Seja em demanda autônoma, seja o encargo alimentar estabelecido em ação outra, a eficácia da sentença tem efeito retroativo.

Na ação de alimentos
            Para assegurar a tutela diferenciada que determinados direitos merecem, leis especiais prevêem ritos abreviados. Assim, os alimentos, que dizem com a subsistência, com a sobrevivência, necessitam de adimplemento imediato. Por isso, mediante a prova do vínculo de parentesco ou da obrigação alimentar (LA, art. 2º), o juiz estipula, desde logo, alimentos provisórios. Aliás, mesmo se não requeridos, os alimentos devem ser fixados, a não ser que o credor expressamente declare que deles não necessita (LA, art. 4º).
            Os alimentos são devidos a partir do momento em que o juiz os fixa. Equivocado o entendimento que, invocando o § 2º do art. 13 da Lei de Alimentos, sustenta que os alimentos provisórios se tornam exigíveis somente a partir da citação do devedor. Não há como sujeitar o pagamento ao ato citatório. Desempenhando o devedor atividade assalariada, ao fixar os alimentos, o juiz oficia ao empregador para que ele, desde logo, dê início ao desconto da pensão na folha de pagamento do alimentante. Os descontos passam a acontecer mesmo antes da citação do réu. Porém, não dispondo o alimentante de vínculo laboral, não há como lhe conceder prazo distinto para iniciar o pagamento dos alimentos, qual seja, só após ser citado. Descabido tratamento diferenciado. Além de deixar o credor desassistido, estar-se-ia incentivando o devedor a esquivar-se da citação, a esconder-se do Oficial de Justiça.
            Deferidos alimentos provisórios são devidos até o momento em que eventualmente venham a ser modificados: no curso da demanda, pela sentença ou quando do julgamento do recurso. Alterado seu valor, passa a vigorar o novo montante, quer tenha sido majorado, quer tenha sido reduzido. A eficácia retroativa dos alimentos definitivos vai depender se houve aumento ou diminuição de valores. Este tratamento diferenciado decorre do princípio da irrepetibilidade do encargo alimentar. Assim, fixados os alimentos provisórios, devem eles ser pagos. Havendo redução, o novo valor terá eficácia ex nunc, ou seja, só valerá com relação às parcelas futuras. As prestações vencidas, ainda que impagas, continuam devidas pelo valor estipulado a título provisório, pois não há como emprestar efeito retroativo à decisão, sob pena de incentivar-se a inadimplência. Somente quando são estabelecidos alimentos definitivos em valor maior que a verba provisória é que cabe falar em retroatividade. O devedor terá que proceder ao pagamento da diferença desde a data da citação. Há que atentar a um detalhe: como os alimentos provisórios vigem desde a data da fixação, e os definitivos retroagem à data da citação, havendo majoração do valor dos alimentos, a diferença alcança somente as parcelas vencidas depois da data da citação. As prestações vencidas entre a data da fixação liminar e a citação permanecem pelo valor provisório.
            Esta sempre foi a posição pacífica da jurisprudência com o respaldo da doutrina amplamente majoritária. Porém, nada justifica limitar a obrigação alimentar ao ato citatório. Os encargos do poder familiar surgem quando da concepção do filho, eis que a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro (CC, art. 4º). Ora, com o nascimento, mesmo antes de o pai proceder ao registro do filho, está por demais consciente de todos os deveres inerentes ao dever familiar, entre os quais o de assegurar-lhe o sustento e a educação. Enquanto os pais mantêm vida em comum, o genitor tem o filho sob sua guarda, e os deveres decorrentes do poder familiar constituem obrigação de fazer. Cessada a convivência dos genitores, não se modificam os direitos e deveres com relação à prole (CC, arts. 1.579 e 1.632). Restando a guarda do filho com somente um dos pais, a obrigação decorrente do poder familiar resolve-se em obrigação de dar, consubstanciada no pagamento de pensão alimentícia.
            Assim, o genitor que deixa de conviver com o filho deve alcançar-lhe alimentos de imediato: ou mediante pagamento direto e espontâneo, ou por meio da ação de oferta de alimentos. Como a verba se destina a garantir a subsistência, precisam ser satisfeitas antecipadamente. Assim, no dia em que o genitor sai de casa, deve pagar alimentos em favor do filho. O que não pode é, comodamente, ficar aguardando a propositura da ação alimentar e, enquanto isso, quedar-se omisso e só adimplir a obrigação após citado.
            Cabe lembrar que, na ação de alimentos, há inversão dos encargos probatórios. Ao autor cabe comprovar o vínculo de parentesco ou a obrigação alimentar do réu, bem como indicar as circunstâncias em que ocorreu a mora, ou seja, a data em que houve a cessação do convívio e o não-pagamento dos alimentos. Não há como lhe impor que comprove os ganhos do demandado, pois são informações sigilosas que integram o direito à privacidade. É do réu o ônus de provar seus ganhos para que o juiz possa fixar os alimentos atendendo ao critério da proporcionalidade. Também a ele compete demonstrar que continuou assegurando a subsistência do filho a partir do momento que deixou o filho de estar sob sua guarda.
            Em se tratando de obrigação decorrente do poder familiar, é inequívoca a ciência do réu do direito reclamado pelo autor. Portanto, não há por que constituir o devedor em mora pelo ato citatório para lhe impor o adimplemento da obrigação alimentar (CPC, art. 219). A mora constituiu-se quando deixa o pai de prover o sustento do filho. Assim, na ação mister que reste provado o parentesco, os ganhos do genitor bem como o momento em que ele deixou de adimplir a obrigação de prover o sustento do filho. Por ocasião da sentença, o juiz fixará os alimentos indicando o termo inicial de sua vigência: aquém da data da citação e aquém da data da propositura da ação. O dies a quo será o momento em que houve a cessação do adimplemento do dever de sustento que decorre do poder familiar. Este é o marco inicial da obrigação alimentar.

Na ação investigatória de paternidade
            Nas ações de alimentos, separação, anulatória de casamento, entre outras, existe a prova pré-constituída do vínculo obrigacional alimentar. Daí a possibilidade de uso de lei especial (Lei 5.478-68), que dispõe de rito diferenciado e admite a concessão de tutela antecipada por meio da fixação de alimentos provisórios.
            Na ação de investigação de paternidade, inexiste o vínculo constituído da relação de parentesco. Aliás, este é o próprio objeto da ação. Ainda assim, por salutar construção jurisprudencial, passou-se admitir a concessão de alimentos provisórios nessa demanda. Havendo indícios da parentalidade, são fixados alimentos initio litis. Também cabe deferir alimentos provisórios, de modo incidental, com o resultado positivo do exame de DNA ou quando se recusa o réu a submeter-se à perícia.
            Sendo os alimentos fixados por ocasião da sentença, o eventual recurso, no que diz com o encargo alimentar, dispõe do só efeito devolutivo. Em qualquer dessas hipóteses cabe promover a execução dos alimentos, ainda antes do trânsito em julgado da ação investigatória.
            Depois de algumas vacilações, a jurisprudência, ao atentar à natureza declaratória da demanda investigatória de paternidade, deu mais um significativo passo, e o Superior Tribunal de Justiça veio a editar a Súmula 227: Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos são devidos a partir da citação.
            Acabou por invocar-se o art. 13, § 2º da Lei de Alimentos. A solução foi providencial. Uma bela forma de dar um basta à postura procrastinatória do réu, que fazia uso de expedientes protelatórios e um sem-número de recursos manifestamente improcedentes para retardar o desfecho da ação. Como a condenação ao pagamento dos alimentos ocorria somente na sentença, livrava-se o réu durante anos, ou décadas, do encargo alimentar.
            Mas pai é pai desde a concepção do filho. A partir daí, nascem os ônus, encargos e deveres decorrentes do poder familiar. O simples fato de o genitor não assumir a responsabilidade parental não o desonera. No entanto, é isso o que se vê acontecer todos os dias. Ao saber que a namorada ou companheira está grávida, o homem tenta induzi-la ao aborto, nega ser o pai, a abandona. Ameaça denegrir sua imagem argüindo a malsinada exceptio plurium concubentium e que levará vários amigos como testemunhas para afirmarem que tiveram contato sexual com ela. A mulher, fragilizada, muitas vezes abandonada pela família, acaba criando o filho sozinha. Tem enorme dificuldade de procurar um advogado, de amealhar provas de um relacionamento íntimo que lhe causou tanto sofrimento e que, muitas vezes, por imposição do varão, se manteve na clandestinidade.
            Mas o filho tem direito à identidade, à proteção integral, merece viver com dignidade, precisa de alimentos, quer ter alguém para chamar de pai. Quando, depois de vários anos, consegue obter o reconhecimento da paternidade, os alimentos injustificadamente são fixados a partir da citação do réu, como se o filho tivesse nascido naquele dia. Essa orientação consolidada da jurisprudência esquece o que se chama de responsabilidade parental. Nenhum pai mais irá acompanhar a mãe, registrar o filho e pagar alimentos sabendo que, se ficar inerte e lograr safar-se da citação, poderá ficar anos sem arcar com nada.
            O filho necessita de cuidados especiais mesmo durante a vida intra-uterina. A mãe tem que se submeter a exames pré-natais, e o parto sempre gera despesas, ainda que feito pelo SUS. Durante a gravidez, a mãe precisa de roupas apropriadas e adequada alimentação, sem olvidar que tem sua capacidade laboral reduzida durante a gestação e depois do nascimento do filho. Também seus ganhos são limitados no período da licença-maternidade.
            É necessário dar efetividade ao princípio da paternidade responsável que a Constituição (art. 227) procurou realçar quando elegeu, como prioridade absoluta, a proteção integral a crianças e adolescentes, delegando não só à família, mas à sociedade e ao próprio Estado, o compromisso pela formação do cidadão de amanhã. Esse compromisso é também do Poder Judiciário, que não pode simplesmente desonerar o genitor de todos os encargos decorrentes do poder familiar e, na ação investigatória de paternidade, responsabilizá-lo exclusivamente a partir da citação.
            Mas há outro princípio constitucional que necessita ser invocado: o que impõe tratamento isonômico aos filhos, vedando discriminações (CF, art. 227, § 6º). O pai responsável acompanha o filho desde sua concepção, participa do parto, registra o filho, embala-o no colo. Com relação ao filho que não recebeu estes cuidados, deve a Justiça procurar suavizar essas desigualdades e não as acentuar ainda mais limitando a obrigação alimentar do genitor, relapso.
            Claro que a alegação do demandado sempre será de que desconhecia a gravidez, não soube do nascimento do filho e sequer tomara conhecimento da sua existência, só vindo a saber de tais fatos quando da citação. Nessas ações, como a prova é de fato que acontece a descoberto de testemunha, não há divisão tarifada dos encargos probatórios segundo os ditames processuais (CPC, art. 333). Aliás, a atribuição dos ônus probatórios até perdeu relevo, em face do alto grau de certeza dos exames de DNA e da presunção que decorre da negativa em submeter-se à perícia (CC, arts. 230 e 231). Súmula do STJ [01] atribui presunção juris tantum à omissão do investigado. Com referência à prova da ciência da paternidade, cabe ao autor demonstrar as circunstâncias em que réu tomou conhecimento de sua concepção, do seu nascimento ou da sua existência. Não logrando o demandado comprovar que desconhecia ser o pai do autor antes da citação, deverá ser-lhe imposto o pagamento dos alimentos desde o momento em que tomou ciência da paternidade.
            Outro fundamento a ser utilizado pelo réu para livrar-se dos alimentos com efeito retroativo é o de que não tinha certeza da paternidade, não podendo assumir o encargo sem saber se o filho era seu. No entanto, desde o advento do exame do DNA, que dispõe de índice de certeza quase absoluto, não há mais como alegar dúvida sobre a verdade biológica. Nem o custo do teste e nem a negativa da genitora em deixar o filho submeter-se ao exame servem de justificativa para não ser buscada a verdade. Basta ingressar com ação declaratória ou negatória de paternidade. Também pode ajuizar cautelar de produção antecipada de prova. Em todas as hipóteses, a quem não tiver condições de pagar, o acesso ao exame genético é gratuito.
            Nada justifica livrar o genitor das obrigações decorrentes do poder familiar, que surgem desde a concepção do filho. Como a ação investigatória de paternidade tem carga eficacial declaratória, todos os efeitos retroagem à data da concepção, até mesmo a obrigação alimentar. A filiação, que existia antes, embora sem caráter legal, passa a ser assente perante a lei. O reconhecimento, portanto, não cria: revela-a. Daí resulta que os seus efeitos, quaisquer que sejam, remontam ao dia do nascimento, e, se for preciso, da concepção do reconhecido. [02]
            Esta é a orientação que já vem se insinuando na doutrina [03] e desponta na jurisprudência. [04]
            É muito bonito falar-se em dignidade humana, em paternidade responsável, em proteção integral a crianças e adolescentes. Mas é preciso dar efetividade a todos esses princípios. Certamente a responsabilidade é da Justiça. Para isso, não é necessário aguardar o legislador. Basta o Poder Judiciário continuar desempenhando o seu papel com coragem e responsabilidade, para garantir a cidadania a todos, principalmente aos cidadãos de amanhã.

Notas
            01 Súmula 301: Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.
            02 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, 3ª. ed., Tomo IX, Borsoi: 1971, p. 99.
            03 FERNANDES, Thycho Barhe. Do Termo Inicial dos Alimentos na Ação de Investigação de Paternidade, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 694, p. 268-70, 1993; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. O Termo Inicial dos Alimentos e a Ação de Investigação de Paternidade, Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, n. 6, p. 50-60, 2000; BORGHEZAN, Miguel. O Termo Inicial dos Alimentos e A Concreta Defesa da Vida na Ação de Investigação de Paternidade, Repertório IOB de Jurisprudência, São Paulo, 3/18048, 2001.
            04 INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECUSA EM SUBMETER AO EXAME DE DNA. ALIMENTOS. FIXAÇÃO E TERMO INICIAL À DATA DA CONCEPÇÃO. A recusa em se submeter ao exame de paternidade gera presunção da paternidade. O fato de inexistir pedido expresso de alimentos não impede o magistrado de fixá-los, não sendo extra petita a sentença.
            O termo inicial da obrigação alimentar deve ser o da data da concepção quando o genitor tinha ciência da gravidez e recusou-se a reconhecer o filho. REJEITADA A PRELIMINAR. APELO DESPROVIDO, POR MAIORIA. (TJRGS – AC 70012915062 – 7ª C.Cív. – Rel. Desa. Maria Berenice Dias – j. 9/11/2005).

Trabalho desenvolvido por MARIA BERENICE DIAS, desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

UMA VEZ SOGRA, SEMPRE SOGRA.


  Impedimentos do § 2º do art. 1.595 do Código Civil
          A televisão é uma das formas de entretenimento mais difundida pelos domicílios brasileiros. Em pesquisa recente foi verificado que há residências em que não existe uma geladeira, mas a presença do aparelho de TV é indispensável. E é nesta forma de cultura que alguns absurdos acontecem. As novelas pregam situações rejeitadas pelo ordenamento jurídico, mas que o povo leigo muitas vezes aceita como possíveis. A bola da vez agora é o relacionamento entre a filha e o marido da sua genitora, o que vem garantindo bons pontos de audiência para a emissora.

            O Subtítulo II do Título I do Livro IV do Código Civil é destinado a tratar do tema referente aos parentes. Em mais de quarenta artigos, o legislador procurou regrar as situações pertinentes ao assunto. Logo no Capítulo I, referente às disposições gerais, o art. 1593 deixa claras as espécies de parentescos aceitas pelo ordenamento jurídico quando determina que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem." Há, portanto, duas formas de parentesco, dentre as quais a civil será objeto do presente ensaio.

            Numa abordagem meramente explicativa, deve-se esclarecer o que vem a ser o parentesco por consangüinidade. Conforme preceitua Caio Mário da Silva Pereira, é a relação "que vincula, umas às outras, pessoas que descendem ter um mesmo tronco ancestral" [01], ou seja: para ser considerado parente consangüíneo, deve existir um ancestral em comum entre as partes; alguém que deu origem a toda a família.

            Porém, em razão de não ser o objetivo central do trabalho aqui apresentado, necessário se faz ultrapassar esta etapa e seguir em busca de um estudo acerca da outra espécie de parentesco.

           A afinidade surge da relação familiar decorrente do vínculo do casamento ou das relações entre companheiros em razão da união estável. É um vínculo derivado exclusivamente de norma legal, não havendo qualquer ligação de sangue. Aqueles que estabelecem uma relação por afinidade, na maioria das vezes, não possuem parentes consangüíneos, sendo um estranho ao outro.

           No que se refere à determinação dos graus, "o cônjuge está inserido na mesma posição na família do seu consorte" [02]. A contagem dos graus de parentesco é feita por analogia, seguindo o determinado no caso de parentesco consangüíneo. Assim, o sogro será parente em primeiro grau em linha reta por afinidade do seu genro, bem como o cunhado será parente em segundo grau e assim por diante.

            Em contrapartida, apesar desta criação legal se equiparar à relação sanguínea, o art. 1.595, § 1º, limita o parentesco por afinidade apenas aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge. Isto implica em dizer que são parentes por afinidade o sogro, a sogra, nora, genros e os cunhados, não mais havendo possibilidade de aumentar esse rol, visto que a norma caracteriza-se por ser taxativa. Ademais, inexiste uma relação entre os parentes dos cônjuges, também chamados de contraparentes. Não há relação de afinidade da afinidade (affinitas affinitatem non pariti), ou seja, não se pode considerar como parente, por exemplo, duas sogras ou dois sogros.

           Por ser uma criação legal, o parentesco por afinidade extingue-se assim que o vínculo que o criou desaparece. Com isso, terminada a relação afetiva (entenda-se como tal o casamento ou a união estável), não há mais que se falar em manutenção daquela. Esta norma, por sua vez, não é absoluta, possuindo uma exceção elencada no art 1595 § 2º do CC.

           Segundo tal dispositivo, "na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento". No intuito de trazer destaque à restrição existente, o legislador inverteu a construção da oração, colocando em primeiro plano a parte final. Assim, fazendo uma leitura direta, conclui-se que não se pode falar em extinção do parentesco em linha reta, mesmo quando a relação que lhe deu origem inexista. Neste sentido, Silvio de Sávio Venosa doutrina:

"Na linha colateral os afins são, portanto, os cunhados. O cunhadio ou afinidade colateral extingue-se com o término do casamento, porém a afinidade em linha reta é sempre mantida. Desse modo, desaparece, por exemplo, o impedimento de o viúvo ou divorciado casar-se com a cunhada, mas permanece o impedimento de casamento de viúvos ou divorciados com sogro e sogra" [03]

            A fim de exemplificar o assunto, Caio Mário diz que, "rompido o vínculo matrimonial, não deixa o sogro ou sogra, genro ou nora de estarem ligados pelas relações de afinidade" [04]. Portanto, dentre os parentes por afinidade determinados no § 1º do art 1595 (ascendentes, descendentes e irmãos do cônjuge), somente o vínculo existente entre cunhados será desfeito com o término do casamento ou da união estável. Permanecerá, desta forma, intacta a conexão entre os ascendentes e descendentes, os chamados parentes em linha reta.

            Vale salientar que a previsão do art. 1.595, § 2º, não se limita somente à esfera civil. No âmbito Penal, ela também influencia no que tange, por exemplo, ao impedimento dos jurados em caso de crime da competência do Tribunal do Júri.
            "Inexiste suspeição ou impedimento de jurado cujo tio foi testemunha no processo, nem daquele cujo tio é cunhado da vítima. Parentesco por afinidade nos termos do § 1º do artigo 1595 do CC, "limita-se aos ascendentes, descendentes, irmãos do cônjuge ou companheiro". Não causa confusão e perplexidade capaz de invalidar o julgamento, a referência nos quesitos de defesa, da expressão vítima visada, desde que indicado seu nome no quesito pertinente ao fato principal que cumulou também a aberratio ictus. [05]
            Ao tratar do tema, o autor Carlos Roberto Gonçalves, em sua obra Sinopse Jurídica – Direito de Família, afirma que, "com o divórcio e conseqüente rompimento do vínculo, não mais persiste a afinidade" [06]. Ora, tal afirmação não pode ser aceita de forma pacífica; afinal, como já demonstrado, a norma não abriu qualquer exceção, determinando que será mantido o parentesco por afinidade em linha reta "com a dissolução do casamento ou da união estável". Portanto, não cabe ao intérprete restringir a aplicação da lei, sendo ela compatível com qualquer tipo de dissolução do casamento, ou seja, desde a morte de um dos cônjuges até mesmo o divórcio.

            Assim, feita esta pequena consideração, e ainda fundamentado nesta limitação imposta pelo § 2º do art. 1595, deve-se questionar acerca da razão pela qual o legislador não permitiu a extinção do parentesco por afinidade em linha reta quando do término da relação que o originou. Será que tal determinação surgiu por mero capricho legislativo ou teve uma razão lógica de ser?

            Acreditamos que há duas justificativas para a existência deste parágrafo segundo do artigo 1595. A primeira diz respeito ao aspecto meta-jurídico, enquanto que a segunda refere-se ao direito sucessório.
            No que tange ao plano extralegal, os princípios sociais seriam abalados com a inexistência da limitação aqui estudada. Ao permitir que seja extinto o parentesco por afinidade em linha reta, estaria o legislador criando situações consideradas como aberrantes e agressivas ao meio social, visto que permitiria a concretização de relacionamentos entre o cônjuge e seu sogro ou sogra.

            Imaginar a relação entre sogra, sogro ou até mesmo filhos e netos com o consorte do cônjuge seria desestruturar o instituto fundamental para a organização da sociedade que é a família. Certamente, apesar da exibição de exemplos nas novelas, não é aceito o relacionamento, por exemplo, do cônjuge com a filha do seu consorte. Consentir com tal questão é ir diretamente de encontro com a ética e moral social.

            Portanto, apenas no mundo fantasioso das novelas, e somente nele, será possível a existência de um relacionamento entre, por exemplo, a filha e o seu padrasto. Não se pode esquecer que tal restrição aplica-se também no caso da união estável que, além da previsão expressa na respectiva norma legal, teve seu tratamento igualado ao do casamento, pela Carta Magna.

            Já no que se refere ao aspecto jurídico, somente se pode concordar com o pensamento do ilustre autor Silvo de Sávio Venosa de que "a afinidade não em repercussões no direito sucessório" [07], mediante a existência do § 2º do art. 1595. Assim, inexistindo tal preceito, a afinidade atingiria diretamente ao direito sucessório conforme demonstraremos.

            Dispõe o art. 1790 e o art. 1829 do Código Civil, respectivamente:
            Art. 1790 - "A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
            I- se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
            II- se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
            III- se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
            IV- não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança;"
            Art. 1829 – "A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
            I- aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
            II- aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
            III- ao cônjuge sobrevivente;
            IV- aos colaterais"
            Aceitar o relacionamento entre o consorte e seus parentes por afinidade em linha reta teria como conseqüência a interferência direta no direito sucessório deste, visto que, conforme preceitua o Código Civil, o cônjuge concorre com o descendente e o ascendente em caso de sucessão hereditária. A fim de demonstrar a influência da situação aqui apresentada no direito sucessório, destaca-se que:

"Concorrendo com descendentes só do autor da herança, receberá o cônjuge parcela idêntica à dos que sucederem por direito próprio. Assim, sendo 4 (quatro) filhos, cada qual receberá 1/5 da herança. Existindo entre os filho algum pré-morto, sua prole, netos do falecido, herdam por representação, partilhando entre si, em quotas iguais, o que cabia ao seu pai (1/5)" [08]

            Não foi por acaso que o legislador, no § 2º do art. 1595, determinou que permanecerá o vinculo de parentesco por afinidade em linha reta, já que em se tratando de direito sucessório, haveria uma grande modificação nos bens destinados ao ex-cônjuge. Assim, buscou-se, além de tudo, compelir fraudes que viessem a acontecer a fim de prejudicar aquele que teve o seu vínculo afetivo finalizado.

            Percebe-se que o legislador utilizou-se da sutileza pertinente ao parágrafo de um artigo para garantir a segurança de grande parte do direito sucessório, o que justifica, mais uma vez, a impossibilidade, tanto do aspecto social como jurídico, de se aceitar que haja um relacionamento entre o consorte e o sogro, sogra, noras, genros ou netos do seu cônjuge.

           Portanto, por ser um meio de informação em massa, deveriam os produtores de programas e novelas da televisão brasileira ter mais cuidado na hora de formular situações como a apresentada atualmente, a fim de que, além de ser respeitada a normal legal, seja garantida a ordem social e a concretização do vínculo familiar.

BIBLIOGRAFIA
            PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: vol VI: Direito de Família. 14. ed. Rio de Janeiro. Forense. 2004.
            VENOSA, Silvio de Sávio. Direito Civil. Direito de Família. 4ª Ed. Editora Atlas. 2004 São Paulo.
            TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL - www.tj.rs.gov.br
            GONÇALVES, Carlos Roberto. Sinopse Jurídicas: Direito de Família. 9 ed atual de acordo com o novo Código Civil (lei nº 10.406 de 10-1-2002. São Paulo. Saraiva. 2003.
            CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil, vol. 6: direito das sucessões. 2 ed atual. rev.. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2003. p. 217.
            CATEB, Salomão de Araújo. Direito das sucessões. 3 ed. São Paulo. Atlas. 2003.

NOTAS
            01 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: vol VI: Direito de Família. 14 Ed. Rio de Janeiro. Forense. 2004. p. 309.
            02 VENOSA, Silvio de Sávio. Direito Civil: Direito de Família. 4 Ed. São Paulo. Atlas. 2004. p. 262
            03 Ob Cit. p 263
            04 Ob Cit. p. 311
            05 Trecho do acórdão da apelação crime nº 70009560392, Relator Elba Aparecida Nicolli Bastos - TJRS
            06 GONÇALVES, Carlos Roberto. Sinopse Jurídicas: Direito de Família. 9 ed atual de acordo com o novo Código Civil (lei nº 10.406 de 10-1-2002. São Paulo. Saraiva. 2003. p.86
            07 Ob Cit. p. 263
            08 CAHALI, Francisco Jose; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil, vol. 6: direito das sucessões. 2 ed atual. rev.. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2003. p. 217.

Trabalho desenvolvido por SALOMÃO RESEDÁ, advogado, mestrando em direito Privado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pós-graduando lato sensu em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
  

INCONSTITUCIONALIDADE DA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO

 APELO À RAZÃO

             Segundo Sócrates (470-399 a.C.), a base das virtudes está no domínio da racionalidade sobre a animalidade (no autodomínio; na liberdade frente aos instintos), que leva à verdadeira felicidade [01]. É verdadeiro o ditado: "quem não vive como pensa, acaba pensando como vive" [02]. Quer dizer: quem não vive segundo as exigências da razão, raciocina segundo as exigências (imediatistas) das paixões, da sensibilidade, dos apetites ou satisfações físicas.
            Cumpre, pois, rejeitar, de plano, o relativismo que impera nas sociedades atuais, que pensam como vivem. É a verdade (racional, científica e moral) que deve conduzir o ser humano, não as opiniões, da maioria ou da minoria. Segundo penso (e aqui não colimo ofender ninguém; expresso uma idéia abstrata, geral), o relativismo é próprio dos espíritos medíocres (medíocres porque não compreendem as verdades ou porque, compreendendo-as, não se dispõem a submeter-se às suas exigências).
            Muito bem. Escrevo contra a legalização da pesquisa com células-tronco embrionárias, contra a legalização do aborto, em qualquer hipótese, inclusive contra a autorização do aborto do anencéfalo. Estou convencido, pelo que demonstraram especialistas de renome, especialmente o Dr. Jérôme Lejeune, da Universidade René Descartes, em Paris, pai da genética moderna e descobridor da Síndrome de Down, de que a vida começa com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, como também de que o anencéfalo é um ser humano vivo, ainda que malformado, merecedor de toda a proteção legal.
            Afirmou o Dr. Lejeune:
            "O que define um ser humano é o fato de ser membro da nossa espécie. Assim, quer seja extremamente jovem (um embrião), quer seja mais idoso, ele não muda de uma espécie para outra. Ele é da nossa estirpe. Isto é uma definição. Diria, muito precisamente, que tenho o mesmo respeito à pessoa humana, qualquer que seja o número de quilos que pese, ou o grau de diferenciação das células." [03]
            Ora, é óbvio que o ser humano no início da sua existência e do seu desenvolvimento não apresenta toda a complexa estrutura do homem maduro, plenamente desenvolvido. O começo de todas as coisas é mais simples do que o seu pleno desenvolvimento. Uma árvore frondosa é um ser mais complexo – pelo menos sob o aspecto externo, da forma – do que a semente germinada.
            É frágil a tese dos abortistas; é relativista, cheia de eufemismos.
            Apenas para argumentar, poder-se-ia admitir existir alguma controvérsia entre os especialistas sobre o começo da vida e sobre a situação do anencéfalo. Controvérsia estranha, porque nos meus tempos de escola parecia não haver qualquer dúvida.
            Pois bem. O direito à vida é o primeiro de todos os direitos; é um direito humano. Se não há acordo entre todos os especialistas, mesmo que não houvesse certeza científica de que vida não há (o que, decididamente, não me parece ser o caso), impor-se-ia a proteção do embrião e do anencéfalo, desde a fecundação do óvulo. In dubio pro embrião. In dubio pro anencéfalo. Na dúvida, deve-se tomar a decisão mais protetiva da vida.
            Não é legítimo matar o que pode ser – na verdade, é – um ser humano. Por quê? Porque os seres humanos (bem ou malformados, completamente desenvolvidos ou não) são iguais perante a lei, perante a Constituição e o Estado; não podemos submetê-los a discriminações arbitrárias e injustificadas.
            Qualquer lei que pretenda legitimar o aborto, inclusive do anencéfalo – prática semelhante às dos nazistas, que vilipendiavam os deficientes físicos –, seria flagrantemente inconstitucional. Com efeito, dispõem os arts. 1.º, III, e 5.º, caput, da Constituição Federal de 1988:
            "Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
            (...)
            III – a dignidade da pessoa humana;".
            "Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
            (...)
            III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
            (...)
            XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;
            (...)
            XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação penal;
            (...)
            XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
            (...)
            XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura (...);
            (...)
            XLVII – não haverá penas:
            a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
            (...)
            e) cruéis;
            (...)
            XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
            (...)
            § 1.º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
            § 2.º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
            § 3.º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais." (Parágrafo incluído pela Emenda Constitucional n.º 45, de 30 de dezembro de 2004) (grifos nossos)
            Veremos que no aborto um homem – um ser humano – inocente é torturado e assassinado de forma cruenta. Sua pena (capital) é mais grave do que a dos verdadeiros criminosos, que possuem, ademais, direito de defesa. Seu delito é existir. Seu azar é ser fraco. O médico e sua mãe exercem verdadeiro juízo de exceção para decretar-lhe a morte.
            Pelo art. 5.º, XLI, não restam dúvidas de que a descriminalização do aborto seria uma aberração inconstitucional. Toda discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais deve ser punida por lei. No aborto, um ser humano mais fraco é privado do seu direito à vida e, conseqüentemente, de todos os seus direitos.
            O direito positivo brasileiro, frise-se, não desconhece a verdade científica. Tanto que o Código Civil Brasileiro, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, estabelece:
            "Art. 2.º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro."
            Demais disso, o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, que dispõe no art. 4.º:
            "1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito está protegido pela lei e, em geral, a partir do momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente."
            Tenha-se em mente o que acontece no abortamento. Ele é feito por um destes processos: 1.º) o bebê é arrancado aos pedaços pelo bisturi do médico, que o corta dentro do útero da mãe. Trata-se de verdadeiro esquartejamento; 2.º) é esmigalhado seu pequenino crânio para que morra; 3.º) o bebê é retirado vivo do ventre de sua mãe, para que morra, já que fora do útero não consegue sobreviver; 4.º) injeta-se uma solução salina na bolsa em que o embrião se aninha, e o bebê morre cauterizado; 5.º) no chamado aborto parcial, extrai-se do ventre materno, mesmo durante o parto inconcluso, o corpo da criança, com exceção da cabeça; "perfura-se, a seguir, o crânio da mesma com um instrumento afiado e faz-se a aspiração do cérebro". Segue-se a retirada do crânio [04].
            Tudo o mais são distorções da verdade e eufemismos. Formas de amenizar a realidade. Substituir, por exemplo, a expressão aborto por interrupção da gravidez não condiz com a verdade. O parto prematuro também é interrupção da gravidez. O que define o aborto é a morte do embrião ou do feto, de um ser humano, pois.
            Não tenho dúvidas acerca da existência do direito natural. A razão demonstra que o legislador e os juízes não detêm poder absoluto. Devem legislar e julgar atentos às leis que regem a natureza humana (sabedores de que o homem não é um animal qualquer; é dotado de racionalidade. Não está sujeito apenas aos instintos. Pode domá-los pela razão). O direito positivo é um instrumento da justiça e do bem comum; não é fim em si mesmo. A democracia, igualmente, não é fim em si mesma; deve servir ao bem comum.
            Com efeito, o reconhecimento da existência dos direitos humanos – a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 –, do direito à vida, à integridade física, à igualdade, à liberdade nada mais são do que o reconhecimento da existência do direito natural.
            Podem o legislador ou o Judiciário, legitimamente, autorizar o extermínio de judeus, ou de negros, ou de louros, ou de pessoas com deficiência mental? Negar o direito natural implica responder sim, porque tudo seria permitido à maioria ou aos mais influentes nos bastidores do poder (aos melhores lobistas, às organizações internacionais mais abastadas).
            Sócrates, Platão e Aristóteles, filósofos pagãos, gigantes do pensamento universal, que precederam o cristianismo, já reconheciam a existência do direito natural [05].
            Santo Agostinho advertia:
            "Em conseqüência, onde não há verdadeira justiça não pode existir verdadeiro direito. Como o que se faz com direito se faz justamente, é impossível que se faça com direito o que se faz injustamente. Com efeito, não devem chamar-se direito as iníquas instituições dos homens, pois eles mesmos dizem que o direito mana da fonte da justiça e é falsa a opinião de quem quer que erradamente sustente ser direito o que é útil ao mais forte. Portanto, onde não existe verdadeira justiça não pode existir comunidade de homens fundada sobre direitos reconhecidos e, portanto, tampouco povo, segundo a definição de Cipião ou de Cícero." [06]
            Vale advertir, contra certos preconceitos de que a Igreja Católica e alguns católicos apelidados radicais ou tradicionalistas têm sido vítimas: um cientista ou jurista não sofre diminuição em sua capacidade técnica por ser católico. Aliás, é preferível deixar-se influenciar por motivações religiosas e racionais do que, por exemplo, por objetivos estritamente individuais ou, quem sabe, econômicos. Observe-se que os não católicos também são influenciados pelas religiões ou correntes de pensamento que – consciente ou inconscientemente – abraçam.
            As posições da Igreja Católica são – pasmem! – racionais e não meramente religiosas. Possuem base científica robusta. Sublinhe-se que foi a Igreja quem nos deu gigantes do pensamento universal como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. A Igreja de Roma tem tradição e competência intelectual. Aliás, o pensamento cristão não desconhece lições importantes dos filósofos pagãos.
            Não sejamos, pois, preconceituosos. Julguemos os argumentos e não partamos do preconceito da falta de autoridade de quem argumenta. Discutamos os argumentos e não sobre quem argumenta. Do contrário, ficará evidente que os argumentos de quem contesta a posição dos católicos tradicionalistas são demasiadamente frágeis.
            Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados, na Comissão de Seguridade Social e Família (CCSF), o Projeto de Lei (PL) 1.135, de 1991, de autoria do Dep. Eduardo Jorge, que descriminaliza o aborto no Brasil, ao qual foram apensados inúmeros projetos pró e contra o aborto, tendo sido, ainda, apresentado um substitutivo ao projeto original pela Relatora Dep. Jandira Feghali, do PCdoB, que opinou pela sua aprovação.
            Solicito, pois, aos senhores deputados do Brasil, lembrando que o cânon 1398 do Código de Direito Canônico da Igreja Católica comina pena de excomunhão latae sententiae (automática, independente de proclamação formal) ao católico que provoca aborto, seguindo-se o efeito, que votem e se empenhem contra qualquer proposição legislativa que promova o aborto em nosso País. Aliás, a Santa Sé tem advertido que os políticos e legisladores católicos não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão se defendem projetos de lei nesse sentido. Creio, aliás, que os católicos, mesmo os não-políticos, que defendem projetos dessa natureza também não estão aptos a aproximarem-se da Sagrada Comunhão. Certamente, o sangue dos pequeninos inocentes recairá sobre a cabeça dos legisladores que defenderem semelhantes propostas.

Notas
            01 MARTINS FILHO, Ives Gandra. Manual esquemático de história da filosofia. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2004. p. 31.
            02. __________. Manual esquemático de filosofia. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2003. p. 12.
            03 In: AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. O Bebê de proveta. Extraído do site: www.cleofas.com.br/virtual/texto.php?doc=moral&id=97. Acesso em: 8 nov. 2005.
            04 BETTENCOURT, Estêvão. Católicas pelo Direito de Decidir (CDD). Pergunte e Responderemos, Rio de Janeiro: Lumen Christi. Ano XLVI. Setembro de 2005. n.º 519. p. 397-99.
            05 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 20. ed., rev. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 306.
            06 A cidade de Deus: (contra os pagãos). Tradução de Oscar Paes Leme. Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2003. v. 2. p. 412

Trabalho desenvolvido por PAUL MEDEIROS KRAUSE, procurador do Banco Central em Brasília (DF), subcoordenador-geral de processos de consultoria bancária e de normas (COBAN), bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.