quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O Conselho Nacional de Justiça e a permissibilidade da aposição de símbolos religiosos em fóruns e tribunais.

O Conselho Nacional de Justiça e a permissibilidade da aposição de símbolos religiosos em fóruns e tribunais: uma decisão viola a cláusula da separação Estado-Igreja e que esvazia o conteúdo do princípio constitucional da liberdade religiosa
               O Conselho Nacional de Justiça, em sessão realizada no dia 29/05/2007, entendeu, nos julgamentos dos Pedidos de Providências nºs 1.344, 1.345, 1.346 e 1.362, que a aposição de símbolos religiosos no âmbito de Fóruns e Tribunais revela-se compatível com a cláusula constitucional da separação Estado-Igreja, mostrando-se insuscetível, portanto, de lesionar os direitos de liberdade religiosa titularizados por ateus, agnósticos, humanistas seculares e pelos seguidores de crenças minoritárias e menos convencionais.
            O fundamento adotado pelo Conselho Nacional de Justiça para justificar tal posicionamento apóia-se na afirmação de que tais símbolos religiosos se traduzem em verdadeiro traço cultural da sociedade brasileira, o que viabilizaria fossem eles fixados em locais públicos, sem que este comportamento estatal apresentasse aptidão para violar quaisquer direitos fundamentais daqueles cidadãos que são adeptos de diferentes convicções religiosas.
            Muito embora respeitável, tal posicionamento, a nosso ver, fragiliza a cláusula da separação e, ao assim fazê-lo, culmina por restringir, de modo sensível e preocupante, o âmbito de proteção do princípio constitucional da liberdade religiosa.
            Antes de abordar, especificamente, a questão pertinente à fixação de símbolos religiosos em locais públicos (e a alegação freqüentemente utilizada para legitimar tal conduta, no sentido de que símbolos religiosos podem se qualificar como elementos culturais), cumpre-nos assentar alguns marcos teóricos, a partir dos quais tentaremos equacionar a questão.
            A primeira premissa a ser fixada é a de que a liberdade religiosa tem a natureza jurídica de um princípio fundamental. E esse específico enquadramento é derivado de uma série de fatores.
            Em primeiro lugar, decorre de seu elevado grau de abstração e da considerável indeterminação de seu conteúdo. É dizer, apenas na análise de cada caso concreto é possível determinar até onde vai o conteúdo deste princípio fundamental, para se saber se, naquelas específicas situações, ele está sendo violado ou não.
            Demais disso, a própria idéia de liberdade religiosa revela-se compatível com diversos graus de concretização, a depender das circunstâncias fáticas de cada caso concreto, o que não se coaduna com o conceito mesmo de "regras", que só admitem seu cumprimento ou seu descumprimento, sem soluções intermediárias, ou de variadas intensidades de adequação (em teoria dos jogos, poder-se-ia afirmar que a aplicação das regras subsume-se à idéia de jogos de soma zero: "ou tudo, ou nada [01]"). Além do que, a liberdade religiosa desempenha um papel fundante dentro do ordenamento jurídico, inspirando e pautando a produção de diversas outras normas, inclusive de normas constitucionais, estas sim a consagrarem os direitos de liberdade religiosa e suas respectivas garantias fundamentais (dentro das quais se insere a cláusula da separação). Trata-se, aí, daquilo que Canotilho denomina "natureza normogenética", a significar que "os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante" [02].
            E mais: no que concerne especificamente à realidade brasileira, a liberdade religiosa qualifica-se como um princípio constitucional implícito. É que, ao contrário do que se verifica, por exemplo, com a liberdade de pensamento, expressamente consagrada no inciso IV do art. 5º da Carta Política ("é livre a manifestação do pensamento..."), não há, no texto da Constituição, qualquer dispositivo que a estabeleça expressamente.
            É certo que os incisos VI e VIII do art. 5º referem-se à "liberdade de crença", ao "livre exercício dos cultos religiosos" e à possibilidade de se invocar "crença religiosa" para se eximir de obrigação legal a todos imposta, desde que se cumpra prestação alternativa legalmente fixada. Ocorre, no entanto, que a noção de liberdade religiosa, em toda sua amplitude, não se subsume à simples liberdade de crença ou à liberdade de culto, ou mesmo a ambas juntas. O princípio da liberdade religiosa transborda a liberdade de crença e de culto para exigir, por igual, a liberdade das organizações religiosas, que devem ser autônomas e soberanas em seus assuntos internos (organizacionais e dogmáticos), além de impor, ao Estado, por meio da cláusula da separação, a adoção de condutas especialmente voltadas à preservação do voluntarismo em matéria de fé (a demandar a igualdade material de crenças) e à tutela da autenticidade do fenômeno religioso.
            O princípio fundamental da liberdade religiosa, portanto, inspira a produção de diversas normas, gera a declaração dos direitos de liberdade religiosa e das garantias fundamentais a eles relacionadas e impõe a adoção de um regime político de clara separação entre Estado e Igreja, não se podendo jamais restringir a noção conceitual desse princípio fundamental a um ou alguns dos particularizados direitos ou garantias que em nome dele foram positivados, sob pena de, em assim ocorrendo, restarem mutiladas algumas dimensões desse princípio fundamental, cuja máxima efetividade deve ser objetivada.
            Interessante observar que a expressão "liberdade religiosa" jamais constou de nenhuma Constituição brasileira. É dizer, desde a Carta Republicana de 1891, que inaugurou, entre nós, a proteção constitucional do pluralismo religioso, jamais foi mencionada a expressão "liberdade religiosa". Protegeram-se os cultos, as crenças, a consciência, mas o termo liberdade religiosa jamais foi mencionado. Tudo a reforçar a assertiva de que a liberdade religiosa deve ser entendida como um princípio fundamental implícito, imanente, que decorre de numerosas outras normas constitucionais que tratam da matéria e que constituem aquilo que se pode denominar estatuto jurídico-constitucional da liberdade religiosa.
            É por esse motivo, também, que não se pode situar a liberdade religiosa num único dispositivo constitucional, pois, repita-se, a liberdade religiosa traduz-se num princípio constitucional cujo núcleo essencial é densificado por uma pluralidade de normas constantes da Lei Fundamental.
            Feitas estas considerações, deve-se destacar que o princípio fundamental da liberdade religiosa se projeta em três dimensões, que lhe conferem densidade: uma dimensão subjetiva ou pessoal, a consubstanciar a liberdade de crença; uma dimensão coletiva ou social, a incluir a liberdade de culto e uma dimensão institucional ou organizacional, a englobar a liberdade institucional e dogmática dos movimentos religiosos. É dizer: o princípio constitucional da liberdade religiosa, em toda sua amplitude, compreende uma dimensão pessoal, uma dimensão social e uma dimensão organizacional. O que significa afirmar que a limitação deste princípio fundamental a apenas duas ou a uma de suas dimensões traduz, necessariamente, a amputação do conteúdo material da liberdade religiosa que, então, estará sendo violada em seu núcleo essencial.
            De outro lado, se a liberdade religiosa qualifica-se como princípio constitucional, as normas veiculadoras da cláusula da separação entre Estado e Igreja consubstanciam verdadeiras garantias fundamentais (ou direito-garantias). É que a cláusula da separação, em vez de declarar direitos aos cidadãos, esgota-se no estabelecimento, contra os poderes públicos, de regras de conduta voltadas à imposição de um comportamento estatal essencialmente fundado na neutralidade axiológica em matéria religiosa e na não-ingerência institucional ou dogmática em relação às Igrejas. Cuida-se, portanto, de norma veiculadora da exigência de um determinado tipo de organização estrutural do Estado, para que o indivíduo possa efetivamente exercer um outro bem jurídico que lhe é reconhecido pelo ordenamento jurídico, elemento individualizador das garantias fundamentais. Trata-se, portanto, de veículo normativo que impõe ao Estado a adoção um único posicionamento (e não de uma faculdade dúplice), outro elemento caracterizador das normas-tutela ou garantias fundamentais ou, ainda, dos direito-garantias.
            Além disso, a cláusula da separação entre Estado e Igreja não se reveste do requisito da autonomia existencial, pois retira sua razão de ser, seus fundamentos legitimadores, dos próprios direitos densificadores do princípio da liberdade religiosa, a exigirem, para sua integral concreção, um regime no qual ente estatal e movimentos religiosos mantêm uma postura de neutralidade entre si.
            Isso quer dizer, portanto, que a separação entre Estado e Igreja nada mais é do que uma garantia fundamental (direito-garantia), voltada especificamente à proteção dos direitos integrantes do conceito maior de liberdade religiosa, pois a história das sociedades já evidenciou que a associação entre político e religioso, entre os poderes temporal e espiritual gera o aniquilamento da liberdade e promove intolerância e perseguições.
            Não é por outro motivo que as aspirações individuais por um regime de total liberdade em tema de fé vieram acompanhadas da reivindicação por um regime que apartasse as figuras do Estado e da Igreja, impedindo, com isso, que os instrumentos a cargo dos poderes públicos fossem utilizados como meios de compulsória conversão, aniquilando um dos fundamentos básicos da própria idéia de religião que é a conversão interior pela fé e pelo voluntarismo, e não a imposição pela força e pela espada.
            A conclusão a que se chega, pois, é a de que as normas que consubstanciam, em um dado ordenamento constitucional, o regime de separação, possuem uma finalidade específica, consistente em assegurar que o princípio da liberdade religiosa não seja ofendido em razão da interferência do Estado em matéria de fé, pois se não há plena liberdade religiosa quando o Estado se imiscui na seara espiritual, então é preciso estabelecer uma cláusula constitucional de garantia, que, ao vedar este comportamento estatal, confira um manto de proteção àquela liberdade fundamental.
            A garantia fundamental da separação Estado-Igreja, de seu turno, num contexto de atribuição de máxima efetividade aos direitos de liberdade religiosa por ela tutelados, não se confunde (é bom que se diga) com a simples não-confessionalidade do Estado. Ou seja, muito embora a não-confessionalidade estatal se qualifique como condição à existência de um real regime de separação, este não se esgota na natureza laica do Estado, impondo, para além disso, sua total neutralidade axiológica em matéria de fé e o reconhecimento, em favor das organizações religiosas, de uma esfera indevassável, no que atine à sua estruturação interna – não-ingerência institucional (a incluir, entre outros fatores, normas de admissão e expulsão de fiéis, organização dos templos, ritos e liturgias, e regras de hierarquia e promoção) – e ao conteúdo mesmo de suas doutrinas de fé (não-ingerência doutrinária).
            Como conseqüência dessa maior amplitude conferida à cláusula da separação (voltada, unicamente, à conferência de uma proteção mais intensa ao princípio da liberdade religiosa), muitos Estados, ainda que não-confessionais, poderão não se encaixar nesse conceito mais dilargado de separação, seja por manterem um regime de religiões privilegiadas – em regra, em favor daquelas que são mais tradicionais, em detrimento dos novos movimentos religiosos –, seja por transmitirem mensagens aos seus cidadãos no sentido da preferência estatal por uma determinada crença, seja por discriminarem ateus e agnósticos a partir da premissa de que a religião, enquanto elemento moral, revela-se indispensável à coesão social e à difusão de determinados valores tidos por essenciais à vida coletiva [03], seja, ainda, por hostilizarem a religião enquanto tal – o que ocorre nos Estados ateus ou laicistas ou de confessionalidade negativa – ou alguns específicos agrupamentos religiosos.
            A idéia, pois, é a de que, para que se possa falar em liberdade religiosa, imperiosa é a consagração institucional do direito-garantia da separação entre Estado e Igreja, e, para que se possa cogitar num regime de real separação, imprescindível é a imposição, aos poderes públicos, de uma conduta pautada tanto na neutralidade axiológica como na não-ingerência institucional ou dogmática nos assuntos internos das organizações religiosas [04].
            O requisito da neutralidade axiológica apóia-se na absoluta necessidade de se preservar o voluntarismo em matéria de fé, através da imposição, ao ente estatal, de uma postura neutra, incapaz de exercer indevidas influências no livre mercado de idéias religiosas e no dissenso interconfessional.
            Isso significa, portanto, que, num regime de separação, além de ser vedado aos Estados professar uma específica doutrina religiosa (tal como ocorre nos Estados confessionais), também lhe é obstado conferir tratamento diferenciado a qualquer crença (seja para favorecer, seja para prejudicá-la) e enviar, através de seus comportamentos, sinais aos seus cidadãos no sentido de uma identificação estatal com determinado pensamento religioso. Até porque, enfatize-se, qualquer comportamento do Estado capaz de transmitir aos indivíduos, mesmo que sutilmente, uma tal mensagem de identificação e preferência em referência a determinada religião, traz, ainda, um outro recado, consistente, este sim, num juízo de demérito e de exclusão, no que concerne a todos aqueles cidadãos filiados às convicções religiosas preteridas [05], que, geralmente, são aquelas crenças minoritárias.
            Irrepreensíveis, no ponto, as palavras do Justice Black, que, ao acentuar a importância da separação Estado-Igreja, afirmou, no voto redigido em nome da Corte, no caso Engle v. Vitale [06]:
            "Quando o poder, o prestígio e o amparo financeiro do Governo são postos atrás de uma determinada crença religiosa, a pressão coercitiva indireta sobre as minorias religiosas, para que se conformem à religião predominante oficialmente aprovada, é clara. Mas os propósitos que jazem sob a cláusula da não-oficialização vão muito além disso. Sua primeira e mais imediata finalidade repousava na crença de que uma união de governo e religião tende a destruir o governo e degradar a religião".
            A interferência do Estado, portanto, no mercado da fé, desequilibra a livre disputa entre crenças [07], interfere na formação das convicções individuais e, ainda, tem a potencialidade lesiva de transmitir aos demais membros da sociedade (não-adeptos do pensamento religioso que mereceu a chancela estatal) um estigma de inferioridade e também de exclusão, capaz de se tornar, ele próprio, um fator de conversão em favor da religião prestigiada pelo ente estatal.
            Vê-se, pois, que a exigência de uma postura de neutralidade axiológica em matéria religiosa funda-se na necessidade de se preservarem a livre formação das consciências religiosas e a liberdade material de escolha dos indivíduos, a exigirem, portanto, que o Estado não interfira no mercado de idéias religiosas e não se utilize de sua carga simbólica e de sua força institucional para conformar as opções pessoais em tema de fé [08]. Daí que a liberdade religiosa impõe um livre mercado de idéias religiosas [09] (que só será realmente livre se estiver a salvo de possíveis desequilíbrios ocasionados pela interferência estatal), a preservar uma das principais características do fenômeno religioso: o voluntarismo [10].
            Eis aí, portanto, o valor subjacente à exigência de uma neutralidade axiológica por parte do Estado: o voluntarismo em matéria de fé, com a conseqüentemente ampla liberdade individual de escolha.
            Irretocáveis, sob tal aspecto, as palavras de Donald Giannella, que, ao enfatizar a relação existente entre voluntarismo religioso e a cláusula da separação, assim se manifestou [11]:
            "A idéia de voluntarismo religioso é naturalmente um aspecto importante da liberdade de consciência garantida pela cláusula do livre exercício religioso. Mas uma interpretação mais ampla da cláusula da separação também confere expressão à dimensão social desse valor, restringindo o uso do poder político na conformação das forças ideológicas e sociológicas que conferem forma social à religião. O crescimento e o avanço de uma seita religiosa devem derivar do apoio voluntário de seus membros. O voluntarismo em matéria religiosa, portanto, adapta-se àquela parte duradoura da crença americana que assume que tanto a religião como a sociedade será fortalecida se as aspirações espirituais e ideológicas buscarem reconhecimento social com apoio em seus méritos intrínsecos. A independência institucional das Igrejas é concebida como uma garantia da pureza e do vigor de seus papéis na sociedade, e a livre competição de crenças e idéias busca garantir a excelência e a vitalidade das Igrejas, em benefício de toda a sociedade. As conquistas práticas do voluntarismo religioso em nossa sociedade pluralista exigem um substancial isolamento do processo político em relação às pressões religiosas e aos dissensos interconfessionais. O tipo de dissenso religioso causado pelo envolvimento de religião e política foi, em grande parte, o mal histórico contra o qual a cláusula da separação foi editada como representando um ‘artigo de paz’" (tradução livre).
            Cabe destacar, ainda, que essa vinculação existente entre voluntarismo religioso e a cláusula da separação também foi estabelecida por Leo Pfeffer [12], que incluiu, também, em tal relação, a idéia de democracia, in verbis:
            "Separação e liberdade religiosa configuram aspectos de uma premissa dual sobre a qual repousa toda nossa democracia. Uma é a premissa do voluntarismo em matéria de consciência e de espírito, em tema de relação estabelecida entre o homem e seu Deus. Esse é um elemento dos mais fundamentais da filosofia democrática Americana. De maneira nenhuma pode uma democracia coagir uma pessoa no que toca a sua relação com seu Criador e no que diz com sua crença ou descrença em Deus. E se nós aceitarmos o conceito de voluntarismo em matéria de fé, de associação religiosa, e de crença, então nós devemos chegar à idéia não apenas de liberdade religiosa, mas, também de separação entre Igreja e Estado" (tradução livre).
            Deve-se destacar, ainda, por oportuno, que, dentro da consagração constitucional da noção mesma de voluntarismo individual em matéria religiosa, inclui-se, por igual, a proteção a um outro valor, também de vital importância num ordenamento jurídico protetivo e pluralista, qual seja, o princípio da igualdade, em sua vertente direcionada à fé. Ou seja, para que se possa falar em livre formação das opções religiosas dos indivíduos, é preciso que as crenças (ou descrenças) disputem pela adesão de seus membros num contexto em que todas elas desfrutem de uma igual dignidade entre si, não podendo o Estado, sob qualquer pretexto, emitir juízos de valor quanto à validade, quanto à verdade ou quanto à respeitabilidade de qualquer uma das doutrinas em disputa.
            Como visto, portanto, um dos elementos configuradores do regime de separação entre Estado e Igreja refere-se à neutralidade axiológica do ente estatal, ou seja, à exigência de que o Estado, com seu comportamento, mantenha-se neutro em tema de religião, abstendo-se de influenciar – seja de maneira ostensiva, como ocorre nos Estados confessionais (ou de confessionalidade negativa), seja de maneira sutil, como muitas vezes ocorre em Estados que apenas formalmente adotam o regime de separação – o livre mercado de idéias religiosas e deixando de conformar, por meio de sua chancela, as opções religiosas (ou irreligiosas) de seus cidadãos, prestigiando, com isso, não só a igual dignidade e respeito de que são titulares todas as convicções (independentemente se minoritárias ou majoritárias), mas, sobretudo, o aspecto voluntário que é próprio das adesões religiosas.
            Para além da exigência da neutralidade axiológica, que busca assegurar o voluntarismo em matéria de fé, a cláusula da separação supõe, ainda, a presença de um outro requisito, sem o qual não haverá que se falar na existência de uma real separação entre Estado e Igreja: o requisito da não-ingerência, a tutelar, de seu turno, a autenticidade do fenômeno religioso.
            Ou seja, a cláusula da separação – que se qualifica como garantia fundamental (direito-garantia) do princípio da igual liberdade religiosa – exige, para que se configure em toda sua plenitude e para que confira ampla proteção ao princípio a ela subjacente, a cumulativa presença de dois requisitos: o da neutralidade axiológica do Estado, de sorte a se assegurar a liberdade material de escolha religiosa, preservando-se o caráter voluntário das adesões em matéria de fé; e o da não-ingerência estatal no âmbito das entidades religiosas, a prestigiar, portanto, a autenticidade do fenômeno religioso, que não pode e não deve ser conformado, padronizado, adaptado ou substituído por efeito de qualquer conduta de intromissão estatal.
            As religiões, portanto, devem tomar aquela exata forma que lhe é imposta por sua doutrina de fé. As doutrinas religiosas, por sua vez, devem conter aquele exato conteúdo, aquele específico ensinamento e aquele particularizado mandamento que, para os respectivos adeptos, qualificam-se como verdades sagradas. Em feliz definição, James Wood Jr. fala do "inviolável direito da religião de ser verdadeira para si mesma" [13].
            Cumpre registrar, neste ponto, que a não-ingerência estatal, a configurar elemento integrante do conceito de separação, deve se projetar em relação a dois aspectos da vida das Igrejas, quais sejam, o aspecto institucional ou organizacional e o aspecto dogmático, atinente ao conteúdo mesmo das doutrinas de fé.
            Daí porque o requisito da não-ingerência abrange tanto a não-ingerência institucional, de sorte a tutelar o direito fundamental à auto-organização religiosa, como a não-ingerência dogmática, a proteger a própria autenticidade dos conteúdos das doutrinas de fé. Ambas as matérias (organização institucional e doutrina de fé), portanto, e em razão da cláusula da separação (e do indispensável requisito da não-ingerência), traduzem-se, em relação ao Estado, em matérias interna corporis, ou seja, em matérias transferidas ao âmbito reservado das próprias Igrejas, infensas, por isso mesmo, a qualquer atuação interventiva por parte dos poderes públicos. Ambos os assuntos, ainda (organização interna e doutrina religiosa), consubstanciam verdadeiras "questões religiosas" (religious question), insuscetíveis, desse modo, de serem alteradas, conformadas ou mesmo avaliadas (em termos de juízo de valor) pelos poderes públicos (incluindo-se, nesse conceito, até mesmo o Poder Judiciário, que também não terá competência para proceder a qualquer julgamento cujo resultado dependa de uma análise, de uma valoração, das matérias inseridas nas questões religiosas) [14].
            Feitas essas considerações, cumpre retornar aos julgamentos realizados pelo Conselho Nacional de Justiça, todos no sentido da plena legitimidade jurídico-constitucional da aposição de símbolos religiosos no âmbito de Fóruns e Tribunais.
            E, com as devidas vênias ao Conselho, imperiosa é a conclusão no sentido de que mencionados decisórios fragilizam a cláusula da separação e, como conseqüência, desprestigiam o princípio maior da liberdade religiosa por ela (separação) tutelado.
            Ora bem, a fixação ou manutenção, pelo Estado ou por seus Poderes, de símbolos distintivos de específicas crenças religiosas representa uma inaceitável identificação do ente estatal com determinada convicção de fé, em clara violação à exigência de neutralidade axiológica, em nítida exclusão e diminuição das demais religiões que não foram contempladas com o gesto de apoio estatal e também com patente transgressão à obrigatoriedade imposta aos poderes públicos de adotarem uma conduta de não-ingerência dogmática, esta última a assentar a total incompetência estatal em matéria de fé e a impossibilidade, portanto, do exercício de qualquer juízo de valor (ou de desvalor) a respeito de pensamentos religiosos.
            Irretocáveis, sob tal aspecto, as palavras de Laycock, para quem [15]:
            "Proteger o discurso religioso dos indivíduos e dos grupos voluntários evita que o governo elimine ou desencoraje um importante tipo de prática religiosa. Essa proteção permite a formação e o funcionamento das comunidades religiosas, permite que elas explorem e desenvolvam sua fé, que divulguem sua mensagem e que busquem convencer os demais. Proibir o discurso governamental que toma posição na questão religiosa evita que os indivíduos culminem por conferir ao governo poderes para participar em seus esforços de persuasão ou conversão; evita que todas as visões sobre religião tenham que competir com o poder de um governo que promove visões diversas; evita que todos sejam coagidos ou manipulados a escolher por uma crença religiosa que livremente não seria escolhida; e, em geral, veda a que o governo encoraje ou desencoraje qualquer crença ou prática religiosa.
            (...).se os indivíduos estão se pronunciado em razão de suas capacidades pessoais, o governo não pode discriminar a favor ou contra eles com fundamento no conteúdo religioso de suas mensagens. O discurso religioso será atribuível ao governo se o governo conferir a ele qualquer assistência não igualmente disponível para os demais discursos privados..." (tradução livre).
            Em outro trabalho, Laycock volta a enfatizar a necessidade de que o Estado não adote comportamentos capazes de fornecer qualquer identificação com específica crença religiosa e de influenciar, com sua força e visibilidade, a liberdade de escolha individual, in verbis [16]:
            "Se o governo fosse livre para exaltar ou condenar religião, celebrar feriados religiosos, liderar preces ou serviços de oração, ele poderia potencialmente exercer enorme influência nas crenças e liturgias religiosas. O governo é grande e altamente visível; para o bem e para o mal, ele iria conformar uma forma de crença e de discurso religioso relativamente aos demais. Uma maior aproximação com a cláusula da neutralidade substancial impõe que o Estado seja silente em tema de religião, deixando os espaços público e privado abertos para a enorme variedade de visões religiosas e formas de cultos representadas no povo Americano" (tradução livre).
            Por esse modo de ver as coisas, as manifestações de fé externadas ou financiadas pelo próprio poder público (que, nos termos da exigência da neutralidade axiológica, não deve professar crença alguma, limitando sua atuação à própria proteção e conservação de um mercado de idéias religiosas que seja plural e igualitário) revelam-se totalmente contrárias ao espírito subjacente à cláusula da separação, desprestigiando o princípio da igual liberdade religiosa, criando situações de injustas preferências e transmitindo aos seguidores das demais religiões uma mensagem de desvalorização e de exclusão, que, além de consubstanciar uma inaceitável análise meritória do conteúdo de dogmas religiosos levada a efeito pelo próprio Estado, culmina por impor aos grupos preteridos uma "lesão estigmática" [17] incompatível com o sistema de direitos fundamentais, a repousar sobre a premissa da igual dignidade de todos [18].
            A idéia central, portanto, é a de que o princípio da liberdade religiosa demanda como garantia a existência de um regime de separação que imponha ao Estado um comportamento pautado pela neutralidade axiológica, de sorte a impedir que condutas estatais, revestidas por sua natureza de especial simbolismo e força coercitiva, venham a interferir, desequilibrando-o, o livre mercado de idéias religiosas, e a influenciar, conformando-a, a livre formação das consciências individuais. Condutas estatais positivas e interventivas são admissíveis e se fazem imperiosas unicamente quando voltadas à eliminação de desigualdades e à maximização da liberdade individual de escolha, o que faz com que qualquer atuação que se afaste de tais parâmetros incida de modo direto na esfera de proibição delimitada pela cláusula da separação [19]. Daí a necessidade da adoção daquilo que Jónatas Machado designou como "separação simbólica" entre Estado e Igreja.
            Cumpre ressaltar, por oportuno, que não se revela apto a justificar comportamentos estatais de endosso a uma específica religião o fato de ser esta precisa crença aquela que é a adotada por um número substancial de cidadãos do Estado.
            É que os cidadãos, precisamente porque são livres e porque se inserem no contexto de um Estado igualmente livre, possuem o direito fundamental de escolha religiosa, a alcançar não só a possibilidade de eleição por uma específica doutrina, mas, também, o direito de trocar de religião a qualquer momento (a consubstanciar o princípio da reversibilidade das opções de fé) e o direito de não professar crença alguma e de duvidar da verdade pregada por todas as existentes. Já o Estado, de seu turno, precisamente para que possa preservar o direito de liberdade de escolha de todos seus cidadãos (inclusive daqueles que optam por professar crenças minoritárias e pouco convencionais) deve manter uma posição de total neutralidade em face do dissenso interconfessional, pois não se pode jamais esquecer que a positivação, em sede constitucional, dos direitos derivados da liberdade religiosa e a consagração da cláusula da separação como requisito indispensável à proteção de tais direitos derivam da constatação histórica de que a associação entre Igreja e Estado, em regra celebrada entre poderes públicos e crença majoritária, culmina por gerar, no extremo, um contexto de franca hostilidade às minorias, no qual a doutrina hegemônica faz subalterno uso do aparelho estatal como instrumento de compulsória conversão e de perseguição de infiéis.
            Não se pode perder de perspectiva, portanto, que foi exatamente a experiência histórica de que a comunhão entre os poderes espiritual e temporal trazia como conseqüência a supressão das liberdades individuais que se estabeleceu a clara noção de que Estado e Igreja deveriam ter uma existência e uma vida independentes entre si. Pelo que, seja qual for a religião seguida pelos seus cidadãos, deve o Estado, imperiosamente, manter-se neutro, sob pena de, com seu comportamento de identificação oficial ou de concessão de regalias, restarem aniquilados o pluralismo religioso, as liberdades religiosas das minorias e a liberdade material de escolha religiosa titularizada por todos (pois somente se pode livremente escolher num contexto de múltiplas opções e de um mercado de idéias livre de influências).
            Além disso, a própria consagração dos direitos fundamentais, como o são tanto aqueles derivados do princípio da liberdade religiosa como aqueles decorrentes da própria cláusula da separação (que, enquanto direito-garantia, também gera direitos subjetivos), desempenha uma função tipicamente contramajoritária, excluindo do poder de disposição das maiorias (muitas vezes meramente ocasionais) aqueles valores fundantes da própria ordem constitucional, como o são o da igual dignidade e respeito de todos e o da liberdade. Se é assim, e se alguns valores fundamentais estão excluídos do poder de conformação das maiorias, então como admitir que o Estado, precisamente em razão de opções e demandas majoritárias, possa ignorar os mandamentos constitucionais atinentes à separação e à neutralidade com os quais deve se posicionar diante das religiões, para, com isso, emitir sinais de endosso e de preferência que, além de enviarem mensagens de exclusão e de demérito incompatíveis com a igualdade de dignidade, culminam por colocar em xeque o próprio regime das liberdades religiosas, ao ignorar a cláusula protetiva que lhes é inerente?
            Nada deve justificar, portanto, que um Estado que se pretenda democrático e plural e que adote um regime de neutralidade e de ampla proteção aos direitos derivados do princípio maior da liberdade religiosa venha a ignorar a garantia fundamental da separação entre Estado e Igreja, para, em atendimento a demandas majoritárias, admitir que seus prédios, seus órgãos e suas repartições sejam adornados com aqueles símbolos religiosos vinculados às crenças tradicionais, muito embora tal permissibilidade signifique o envio, aos cidadãos vinculados a diferentes crenças ou a nenhuma delas, da mensagem do desvalor, do estigma da exclusão e da pecha da inferioridade.
            O fato, portanto, é que não se deve jamais desconsiderar ou minimizar a força coercitiva e simbólica de que se revestem os comportamentos manifestados pelo poder público. Assim, ao endossar determinada crença religiosa, fazendo uso, para suas próprias finalidades, de seus símbolos de fé, o Estado estará efetivamente transmitindo aos cidadãos o claro recado de que, após analisar as diversas doutrinas religiosas existentes, optou por professar ou por prestigiar apenas uma delas, sendo conseqüência ineliminável dessa escolha a emissão de um juízo de desvalor relativamente aos dogmas preteridos que se mostra de todo incompatível com a própria razão de ser da cláusula da separação. Ao assim proceder, pois, o Estado está a abandonar sua necessária posição de neutralidade, para se avocar a subalterna condição de "juiz de fé", dando-se por competente para julgar e analisar o conteúdo mesmo das doutrinas religiosas, para, a partir daí, optar por uma delas em detrimento de todas as demais.
            Mas não pára por aí, pois a posição estatal de endosso aos símbolos da religião majoritária e às mensagens de fé a eles inerentes culmina por perpetuar, à revelia do princípio constitucional da igual liberdade religiosa, uma situação de desigualdade e de hegemonia, que, em regra, foi conquistada e consolidada às custas de uma história de perseguições e de hostilidades.
            Além disso, a premissa de que a religião majoritária deve merecer do Estado um tratamento especial que seja compatível com sua relevância social, caso acolhida, instaurará um ciclo vicioso de desigualação entre crenças que pode culminar com a total aniquilação dos movimentos religiosos minoritários.
            Explico: nos termos daquela reivindicação por tratamento especial a crenças predominantes, quanto maior for a religião, maior endosso receberá dos poderes públicos. E quanto maiores esses comportamentos estatais chanceladores (revestidos de forte carga simbólica e da força coercitiva do Estado), maior e mais forte se tornará a religião beneficiada em detrimento das demais, o que imporá, novamente, uma majoração de seus privilégios, fechando, assim, um ciclo vicioso cujos resultados serão o fim do pluralismo religioso e, como conseqüência, o fim da liberdade material de escolha religiosa.
            Nem se alegue, finalmente – como o fez o Conselho Nacional de Justiça – que os símbolos religiosos da crença majoritária possuiriam uma significação transcendente, pois representariam, sobretudo, a própria cultura e tradição nacionais. É que os símbolos religiosos, enquanto ícones representativos de uma específica doutrina religiosa que lhes dá significação, jamais perderão a específica vinculação dogmática que lhes é subjacente, o que importa dizer que, por mais que alguns símbolos, por sua própria aceitação, tenham se transformado em elementos distintivos da cultura e da tradição de determinado país, essa nova significação que lhes foi agregada jamais suplantará a aura religiosa que lhes envolve e que lhes confere sentido.
            Nessa linha, a orientação de Colleen Connor, para quem "Symbols often communicate the beliefs and teachings of a particular religion because they are an integral part of religious practice and are thus inextricably linked to the ideas and beliefs that they represent". A autora também sustenta a posição de que qualquer comportamento estatal que afixe, permita que seja afixado ou que financie ou mantenha a afixação de símbolos religiosos em locais públicos é inconstitucional [20].
            Demais disso, não custa colocar em evidência, uma vez mais, que a hegemonia social de uma dada religião em detrimento de todas as demais, além da consolidação de suas idéias e de seus símbolos como verdadeiros elementos integrantes da tradição nacional, foram, em regra (ao menos nos países de tradição católica) [21], conquistadas ao longo de anos de dominação, de perseguição, de hostilidades e da própria negação dos direitos de liberdade, o que impõe ao Estado o dever de, agora, conferir tratamento necessariamente igualitário a todas as religiões e respectivos símbolos, sem eternizar, portanto, posições de vantagens obtidas com violação a direitos e viabilizando, assim, que o crescimento e a consolidação das crenças religiosas decorram unicamente do reconhecimento individual a respeito do mérito intrínseco de suas verdades e não, ao contrário disso, que sejam reflexo de uma interferência estatal capaz de cristalizar uma dada posição de prestígio [22].
            Enfatize-se, ainda, que o fundamento utilizado pelo Conselho Nacional de Justiça, para fins de legitimição da afixação/manutenção de símbolos religiosos no âmbito do Poder Judiciário – qual seja, o da natureza "cultural" de tais símbolos – foi exatamente o mesmo levantado – e rechaçado – pelo Tribunal Constitucional Alemão, quando do reconhecimento da inconstitucionalidade da manutenção de um crucifixo em escola primária da Bavária (93 BverfGE I).
            Ao assim proceder, a Corte Constitucional Alemã reverteu decisão da Corte Constitucional da Bavária que, na exata linha do CNJ, dava pela legitimidade da presença do referido símbolo religioso, por entender, em síntese, que a presença do crucifixo não ofendia os direitos de liberdade religiosa negativa dos alunos ou dos pais de alunos cujas convicções rejeitavam tal simbologia, e que a representação de uma cruz, como símbolo de sofrimento de Jesus, era objeto significativo da própria tradição Cristã-ocidental e, portanto, um elemento não apenas religioso, mas, também, cultural [23].
            De se ver, portanto, que o esvaziamento do conteúdo religioso do símbolo e a invocação da tradição e da cultura qualificam-se como fundamentos freqüentemente invocados para fins de atribuição, às religiões majoritárias, de um tratamento estatal privilegiado de todo incompatível com a cláusula da separação (a impor uma postura de neutralidade axiológica por parte dos poderes públicos) e, também, violador da liberdade de material de crença, a exigir, como visto, que a livre formação das escolhas religiosas se dê num contexto de livre mercado de idéias e de ausência de influências ou sinais de identificação emitidos pela pessoa do Estado.
            Além disso, como já dito, por mais que os símbolos religiosos das confissões majoritárias, por sua aceitação, possam também se configurar como distintivos de uma dada tradição nacional, o fato é que essa nova significação que lhes é agregada jamais terá o condão de esvaziá-los da mensagem de fé que lhes confere sentido.
            Por esse motivo, temos por irretocável o acórdão proferido pela Corte Constitucional Alemã (93 BverfGE I), que, em 1995, por maioria de votos, e na linha do que aqui defendido, deu pela inconstitucionalidade de lei da Bavária que impunha a colocação de cruzes nas escolas públicas e, ao defender a liberdade material de escolha religiosa, pronunciou-se nos seguintes termos [24]:
            "O art. 4 I [25] não se limita a proibir que o Estado interfira nas convicções religiosas, nos atos ou nas manifestações de fé de cada um ou de cada sociedade religiosa. O Estado tem a obrigação de assegurar que a personalidade se possa desenvolver dentro do âmbito religioso e das visões de mundo. Ainda assim, deve protegê-la de ataques e aborrecimentos causados por partidários de outras crenças ou grupos religiosos. Sem dúvida, o Art. 4 I LF não concede a nenhum particular ou sociedade religiosa o direito de expressar suas convicções religiosas com o apoio estatal. Pelo contrário, da liberdade religiosa garantida pelo Art. 4 I se depreende ainda mais o princípio da neutralidade do Estado frente às diversas religiões e credos. O Estado pode assegurar a coexistência pacífica dos adeptos das diferentes religiões e cosmovisões somente se ele mesmo permanece neutro em questões de fé" (tradução livre).
            O recado passado pela Corte Constitucional, portanto, é o de que a preferência estatal (velada ou explícita) em relação à determinada crença religiosa se traduz num fator de forte influência sobre os indivíduos, em relação à escolha de sua crença religiosa. Esta opção estatal, que tem o condão de direcionar o momento de eleição das crenças religiosas pelos cidadãos, acaba por fulminar a própria liberdade de crença, pois a orientação da religião favorecida possuirá meios que só a ela estão disponíveis, em ordem a conformar as convicções religiosas dos indivíduos.
            Deve-se consignar, ainda, que, como era de se esperar (pois os privilégios históricos não se desfazem facilmente), referida decisão veio acompanhada de séria polêmica. Autoridades da Bavária ameaçaram descumprir o julgado e fortes manifestações de Bispos Católicos e Protestantes foram realizadas. Essas fortes reações, narradas por Howard Caygill e Alan Scott, fizeram com que os referidos autores se questionassem se "a Constituição não poderia se posicionar numa situação de antagonismo em relação ao contexto em que ela está inserida" [26].
            Habermas [27], de seu turno, ao comentar as fortes reações levantadas contra a decisão tomada pela Corte Constitucional alemã, afirmou o seguinte:
            "No Ocidente, a reorganização cognitiva das doutrinas e atitudes das comunidades religiosas majoritárias não está de forma alguma completa. As respostas alarmistas para a tão comentada decisão do ‘Crucifixo’, adotada pela Corte Constitucional Alemã, são amplas evidências disso. A corte declarou que o decreto das autoridades de Ensino Primário da Bavária, de acordo com o qual as escolas públicas tinham o dever de pendurar um crucifixo em cada sala de aula era inconstitucional; a corte entendeu que o mencionado decreto violava o princípio da neutralidade que o Estado deve manter em assuntos religiosos e ofendia a liberdade de expressão religiosa – tanto a liberdade positiva, de ‘poder viver de acordo com suas convicções’ e, em particular, a liberdade negativa, de ‘poder se abster de ações cultuais de uma crença com a qual não se concorda’. Enquanto que a maioria mencionou a paridade entre igrejas e confissões, da maneira como consagrada na Lei Fundamental, como fundamento para o julgamento, aqueles que divergiram do resultado final e os oponentes políticos do julgado justificavam suas críticas afirmando que o crucifixo servia não como um específico símbolo da fé Cristã, mas como parte integral da cultura ocidental. Obviamente, as autoridades escolares estavam agindo com a mesma intolerância externada pelas autoridades Turcas, que, fora de qualquer interesse vinculado ao sentimento religioso da população Islâmica, baniram a publicação de um volume ilustrado do Renascimento Italiano porque ele continha muito nu feminino. Essas ações não distinguem os valores éticos adotados por uma comunidade religiosa daquele domínio em que se devem aplicar os princípios legais e morais que governam a coexistência na sociedade como um todo" [28] (tradução livre – sem grifos no original).
   Por todas essas razões, temos que o Conselho Nacional de Justiça, nos julgamentos referidos, ao permitir que Estado, em clara violação à garantia fundamental da separação, continue se valendo de símbolo religioso de específica crença, perpetuando, com isso, situações de privilégios em favor de religião majoritária, em detrimento de ateus, agnósticos, humanistas seculares e dos demais movimentos religiosos (minoritários, menos convencionais e, como conseqüência, mais vulneráveis), desconsiderou que, numa verdadeira "ordem constitucional livre e democrática", deve-se optar, "claramente, por valores de justiça, reciprocidade e imparcialidade, em detrimento de princípios de autoridade, hierarquia, tradição e dominação" [29].

Notas
            01DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 55.
            02CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra, Almedina, 2000, p. 1125.
            03A Suprema Corte Americana, no caso School Dist. V. Schenpp (1963) rejeitou argumentos fundados no desenvolvimento moral dos cidadãos como fator de legitimação de exercícios religiosos desenvolvidos em escolas públicas.
            04Para Thierry Rambaud: "Resulta dessa primeira análise que três garantias principais de um regime de separação dos cultos e do Estado podem ser identificados: a neutralidade do Estado de um ponto de vista axiológico; o igual tratamento de todas as coletividades religiosas, nenhuma podendo receber um tratamento particular que lhe seja favorável ou desfavorável (digo eu, requisito intrínseco à idéia de neutralidade axiológica, a implicar um comportamento que impeça o Estado de enviar mensagens no sentido da preleção de uma determinada crença em detrimento das demais ou das convicções de ateus e agnósticos); a incompetência do Estado para conhecer de questões religiosas e eclesiásticas e seu corolário, o reconhecimento da liberdade institucional das coletividades religiosas". RAMBAUD, Thierry. Le principe de séparation des cultes et de l´état en droit public comparé: analyse comparative des regimes français et allemand. Paris: L.G.D.J, 2004, p. 7-8.
            05 "O Estado crê e confessa, considerando umas determinadas crenças como as únicas verdadeiras. Não só valora negativamente a falta de crença como também qualquer outra crença que não seja a do Estado: cuius regio eius religio". LLAMAZARES FERNANDEZ, Dionísio. Principios, tecnicas y modelos de relación entre Estado y grupos ideologicos religiosos (Confessiones religiosas) y no religiosos. Revista de Estudios Políticos, n. 88, p. 54, abr./jun. 1995.
            06Sobre as dificuldades que a Suprema Corte encontrou para fazer valer tal decisum, relativo às orações escolares, Cf. RODRIGUES, Lêda Boechat. Suprema Corte dos Estados Unidos: Liberdade de Religião e Separação da Igreja e do Estado. Revista Brasileira de Estudos Políticos, São Paulo, n. 44, p. 73-102.
            07Sobre o assunto, conferir: PFEFFER, Leo. Creeds in competition. New York: Harper § Brothers, 1958.
            08Nos dizeres de Jónatas Machado, "...competindo as confissões religiosas no mercado das idéias como alternativas entre si, a sua igual liberdade é, a um tempo, uma conseqüência necessária e uma condição indispensável da e para a liberdade religiosa individual". MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Pré-compreensões na disciplina jurídica do fenômeno religioso. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. 68, p. 176, 1992.
            09A expressão livre mercado de idéias religiosas é atribuída, por Jónatas Machado, a Oliver Holmes, que se baseou, para cunhar tais dizeres, nos ensinamentos de Stuart Mills. MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva – dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 349, 1996.
            10Em outro trabalho, Jónatas Machado faz uso da expressão "mercado da concorrência espiritual". Nele, apesar de questionar a utilização de termos econômicos em tema de liberdade religiosa (temendo, com tal utilização, uma "banalização do fenômeno religioso pelos diversos operadores jurídicos, levando-os a pretender regulá-lo como se o mesmo dissesse respeito à produção e a comercialização de um bem ou de um serviço"), o autor afirma que "O que caracteriza o fenômeno religioso, em toda a sua riqueza e complexidade, é o estado de concorrência espiritual que se verifica entre os diversos movimentos, independentemente da sua dimensão. Cada um deles autocompreende-se, geralmente, como possuindo a experiência religiosa mais autêntica, pura e completa, procurando apresentar-se como tal aos olhos da comunidade. Esta depara-se, desde logo, com o facto social da pluralidade religiosa, ou seja, com uma competição entre confissões religiosas tipicamente marked based, que naturalmente requer o estabelecimento de um merco livre das idéias (free marketplace of ideas).
            A analogia do mercado permite iluminar alguns aspectos da relação das confissões com o Estado, evidenciando, desde logo, que, por detrás desta jaz o problema fundamental da relação das confissões religiosas umas com as outras". MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. A Constituição e os movimentos religiosos minoritários. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. 72, p. 201-203, 1996.
            11GIANNELLA, Donald. Religious liberty, nonestablishment, and doctrinal development – Part II. The nonestablishment principle. Harvard Law Review, v. 81, p. 517, 1968.
            12PFEFFER, Leo. Freedom and separation: america´s contribution to civilization, Journal of Church and State, v. 2, p. 105, 1960.
            13WOOD JR., James E. Separation vi-à-vis accommodation: a new Direction in american church-state relation?, Journal of Church and State, p. 204, 1989.
            14MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. A Constituição e os movimentos religiosos minoritários, cit., p. 229.
            15LAYCOCK, Douglas. Theology scholarships, the pledge of allegiance, and religious liberty: avoiding the extremes but missing the liberty. Harvard Law Review, v. 118, p. 418-419, 2004.
            16Id. The underlying unity of separation and neutrality. Emory Law Journal, v. 46, p. 72, 1997.
            17A expressão "lesão estigmática" foi cunhada por Hirsch, quando o autor aborda a questão da necessidade de se tratar com "empatia" as "classes suspeitas", excluídas social e juridicamente. HIRSCH, H. N. A theory of liberty: the Constitution and minorities. New York: Routledge, 1992. p. 194 e ss.
            18A jurisprudência da Suprema Corte Americana é vacilante na matéria, levando em consideração o contexto em que inseridos os símbolos religiosos para perquirir da mensagem que eles podem enviar (se de endosso estatal, ou não). Cf: Lynch v. Donnelly 465 U.S. 668 (1984) e County of Allegheny v. ACLU 492 U.S. 573 (1989).
            19Também nesse sentido o posicionamento de Jónatas Machado, que postula uma "separação simbólica" entre Estado e Igreja. MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva – dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, cit., p. 359.
            20 CONNOR, M. Colleen. The constitutionality of religious symbols on government property: a suggested approach. Journal of Church and State, p. 385, 1995.
            21MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. A Constituição e os movimentos religiosos minoritários, cit., p. 229-230, nota de rodapé 76.
            22MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva – dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, cit., p. 336.
            23As passagens da decisão proferida pela Corte Constitucional da Bavária foram extraídas do seguinte trabalho: CAYGILL, Howard; SCOTT, Alan. The basic law versus the basic norm? The case of the Bavarian Crucifix Order. Political Studies, v. 44, n. 3, p. 507-508.
            24SALAZAR SÁNCHEZ, Marta.. El "Fallo de Los Crucifijos" Del Tribunal Constitucional Federal Alemán (16 de mayo de 1995). Revista de Derecho Publico, Chile, n. 60, 1996. Também comentando este acórdão da Corte Constitucional alemã: KOMMERS, Donald. The constitucional jurisprudence of the Federal Republic of Germany. 2. ed. Duke University Press, 1997. p. 472-486.
            25Art. 4 I da Lei Fundamental de Bonn: "A liberdade de crença e de consciência e a liberdade de manifestação religiosa e ideológica são invioláveis".
            26CAYGILL, Howard; SCOTT, Alan. op. cit., p. 314-315.
            27HABERMAS, Jürgen. Intolerance and discrimination. International Journal of Constitutional Law, v. 1, n. 1, p. 7-8, jan. 2003.
            28No original: "In the West, the cognitive reorganization of the doctrines and attitudes of the major religious communities is by no means complete. The alarmist responses to the so-called ‘Crucifix’ decision by the
German Constitutional Court
are ample evidence of this. The court declared the decree by Bavarian Primary School authorities, according to which government schools were duty-bound to hang a crucifix in each classroom, was unconstitutional; the court found that the decree violated the principle of neutrality the state has to maintain in religious matters and contradicted the freedom of religious expression – both the positive freedom of ‘being able to live according to one’s own convictions’ and, in particular, the negative freedom of ‘being able to abstain from the cultic actions of belief one does not share’. While the majority cited the parity of churches and confessions as laid out in the German Basic Law as the basis for its judgment, the dissenting members and political opponents of the decree justified their criticism by stating that the crucifix served not as a specific symbol of the kernel of the Christian faith, but as an integral part of Western culture. Obviously, the school authorities were acting no less intolerantly than those Turkish authorities who, out of concern for the religious feelings of the Islamic population, banned the publication of an illustrated volume on Italian Renaissance paintings because it contained too many plates depicting nude women. Such actions fail to distinguish the ethical values held by a religious community from the domain in which one should apply the legal and the moral principles that govern co-existence in society as a whole".
            29Id. A Constituição e os movimentos religiosos minoritários, cit., p. 228.

Elaborado em 06.2007.

       
Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro

bacharela em Direito e Relações Internacionais, mestra em Direito e Estado pela Universidade de São Paulo (USP), professora de Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional do Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

ESTADO LAICO NÃO É ESTADO ATEU E PAGÃO

             Desde a Constituição do Império de 1824, os textos magnos pátrios consagram o princípio da liberdade religiosa, o que se dá amplamente a partir da Carta Republicana de 1891. O Estado Laico, longe de ser um Estado Ateu — que nega a existência de Deus — protege a liberdade de consciência e de crença de seus cidadãos, permitindo a coexistência de vários credos. Aliás, é princípio fundamental do cristianismo e muito precioso aos católicos, que compreendem a parcela maior dos brasileiros, o profundo respeito à liberdade religiosa de cada um, como bem se afirma na declaração "Dignitatis Humanae", do Concílio Vaticano II.
            As Constituições fazem expressa menção, em seus preâmbulos, à confiança depositada em Deus (1934), colocando-se sob sua proteção (1946), ou afirmando o amparo divino, como pouco humildemente se fez em 1988. Esta percepção da importância de Deus como fundamento de uma sociedade fraterna radica na indissociável conexão entre a história, a cultura e o próprio Criador, o que é imprescindível para a elaboração de políticas públicas que não colidam com a liberdade religiosa e nem desrespeitem a profunda religiosidade da nação brasileira.
            Daí a enorme distância entre o pluralismo religioso do Estado Laico e um Estado Ateu ou Pagão que nega a existência de Deus ou prega a divinização do ocupante do poder. Nero lançou no ano 64 uma feroz perseguição aos cristãos, que se seguiu ao longo do século II para a preservação do culto pagão aos imperadores. Hitler, com políticas de extermínio do povo judeu — e também de cristãos, ciganos e deficientes físicos — sustentou um Estado Ateu em que o Füher era o senhor supremo da vida e da morte.
            Por outro lado, Bento XVI, o Papa do Amor e da Paz da encíclica "Deus Caritas Est", ao abrir a V CELAM, em Aparecida, considerando "a realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo", afirmou:
            "O que é esta «realidade»? O que é o real? São «realidade» só os bens materiais, os problemas sociais, econômicos e políticos? Aqui está precisamente o grande erro das tendências dominantes no último século, erro destrutivo, como demonstram os resultados tanto dos sistemas marxistas como inclusive dos capitalistas. Falsificam o conceito de realidade com a amputação da realidade fundante, e por isso decisiva, que é Deus. Quem exclui Deus de seu horizonte falsifica o conceito de «realidade» e, em conseqüência, só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas. A primeira afirmação fundamental é, pois, a seguinte: Só quem reconhece Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano. A verdade dessa tese é evidente ante o fracasso de todos os sistemas que colocam Deus entre parênteses."
            Para se evitarem "caminhos equivocados e com receitas destrutivas", é indispensável que o Estado Laico também dialogue com a ciência, que, quando busca a verdade e é conduzida com vistas à preservação da dignidade humana em plenitude, não contradiz verdades de fé. E nos temas de proteção à vida, a ciência moderna comprova que ela se dá a partir da concepção, o que já impõe substancial amparo jurídico do Estado. A proteção constitucional e legal à vida — única e irrepetitível — a partir de seu início, confirma, pois, aquilo que algumas das maiores religiões já afirmam desde tempos imemoriais.
            Assim, quando se defronta com temas como aborto, pesquisas destrutivas com células-tronco embrionárias, comercialização de embriões humanos por clínicas de fertilização artificial, não se pode calar a manifestação de cristãos, judeus, muçulmanos e até mesmo de ateus, como expressão da rica realidade dos que compõem a sociedade brasileira. Quando se sustenta que o Estado deve ser surdo à religiosidade de seus cidadãos, na verdade se reveste este mesmo Estado de características pagãs e ateístas que não são e nunca foram albergadas pelas Constituições brasileiras. A democracia nasce e se desenvolve a partir da pluralidade de idéias e opiniões, e não da ausência delas. É direito e garantia fundamental a livre expressão do pensamento, inclusive para a adequada formação das políticas públicas. Pretender calar os vários segmentos religiosos do país não é apenas antidemocrático e inconstitucional, mas traduz comportamento revestido de profunda intolerância e prejudica gravemente a saudável convivência harmônica do todo social brasileiro.

Elaborado em 06.2007.
Ives Gandra da Silva Martins
advogado em São Paulo (SP), professor emérito de Direito Econômico da Universidade Mackenzie

Câmara aprova proposta que diminui poder do MP

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

CHEQUE SEM FUNDOS? VEJA COMO LIMPAR SEU NOME!

Para limpar o nome em caso de cheque sem fundos protestado, a primeira providência é procurar a agência do banco indicado como apresentante da ocorrência de cheque sem fundos.

Após, solicite a eles informações sobre o número, valor e data do cheque que foi apresentado por duas vezes sem que houvesse saldo na conta corrente para pagamento.

Em seguida, verifique nos canhotos de cheques em seu poder para quem foi emitido o cheque. Procure a pessoa ou a empresa, a fim de regularizar o débito e recuperar o cheque

De posse do cheque, prepare uma carta, conforme orientação do gerente da sua conta. Junte o original do cheque recuperado, recolha no banco as taxas pela devolução do cheque e protocole uma cópia dos documentos entregues para regularização no Banco Central.

Para regularização no Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos (CCF), o correntista deve acompanhar e obter o protocolo da comunicação de regularização do seu banco para o Banco do Brasil, encarregado pelo Banco Central de processar a atualização do arquivo de CCF.

A regularização de cheques sem fundos só ocorre após o Banco do Brasil enviar o comando específico para os órgãos de proteção ao crédito, por meios magnéticos.

Para saber mais:

Cheque foi devolvido. Como resolver a situação?

A reapresentação de um cheque e a sua devolução por falta de fundos (alínea 12) faz um grande estrago na vida do consumidor: além de ter o CPF enviado ao Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundo (CCF) do Banco Central, ele fica impedido de retirar talões de cheque, abrir conta bancária e obter financiamentos. E regularizar a situação não é simples, tendo em vista que é comum o repasse de cheques a terceiros, “pois é sua característica circular”, lembra Robson Xavier de Araújo, da De Rosa, Siqueira e Advogados, e o consumidor pode não encontrar o beneficiário”.

Embora a Circular nº 2.989 do Banco Central, no artigo IV, obrigue as instituições financeiras a fornecer nome e endereço do emitente do cheque ao credor que vier a solicitá-los, quem tem o título sem fundos nas mãos nem sempre procura o banco, seja porque o valor do cheque é pequeno, seja em razão dos transtornos que isso acarreta. “Daí, o consumidor fica prejudicado, pois o banco exige a apresentação dos cheques ou declaração do beneficiário de que o débito foi quitado”, diz Danton Ramos Neto, da Associação dos Direitos do Consumidor (Proconsumer).

Roberto M. Martins demorou quase dois anos para “limpar” seu nome depois que 17 cheques do Banco Real ABN Amro voltaram por falta de fundos, em 1999.

“Onze deles eu consegui reaver, mas os outros não foram cobrados nem protestados pelos credores, o que me impediu de resgatá-los.”

Ao tentar apresentar os 11 cheques aos banco, porém, surgiu uma nova dificuldade. “O ABN exigia que eu reapresentasse todos de uma vez para limpar meu nome, o que era impossível, pois não os tinha em mãos nem dispunha do dinheiro suficiente pagar a taxa de R$ 14 por cheque devolvido que o banco cobra”, diz. “O jeito foi enviar carta ao JT.”

Depois da intervenção do jornal, Roberto conta que o banco aceitou receber os 11 cheques resgatados, desde que acompanhados de declarações das pessoas que tinham os demais comprovando o pagamento da dívida. O banco acrescenta que a apresentação dos cheques pôde ser feita aos poucos, como Martins desejava, dada a dificuldade de pagar os R$ 14 de taxa por cheque, e o assunto foi solucionado.

Segundo a Febraban, é norma do BC para a exclusão do CCF o recolhimento de uma taxa por cheque devolvido, cujo valor varia em cada banco. Além disso, também podem ser cobrados os serviços de inclusão e exclusão, o que encarece os custos do procedimento.

Para a exclusão do CCF, o consumidor deve apresentar ao banco ou os cheques que deram origem ao apontamento ou a declaração dos beneficiários dando quitação à dívida. Esta, no entanto, deve ser autenticada em tabelião ou abonada pelo banco endossante, e sua entrega tem de ser acompanhada de cópia microfilmada do cheque devolvido e certidões negativas dos cartórios de protesto, em nome do emitente.

Isso, segundo a Febraban, dificulta ações ilegais – em que o correntista pede a amigo ou parente atestar que o cheque foi passado a ele e o débito foi quitado, o que caracteriza crime de falsidade ideológica.

Se não conseguir reaver os cheques nem localizar os beneficiários, “o jeito é esperar cinco anos para ter o nome excluído do CCF automaticamente”, explica Daniel Manucci, presidente da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Abrascon). Só assim o consumidor voltará a ter talão de cheques.

Cuidado com falsas promessas

A perspectiva de ficar sem crédito por tanto tempo tem levado consumidores a recorrer às empresas de reabilitação, mas atenção: o resultado do serviço por elas prestados não são garantidos, visto que se limitam a negociar o débito com os credores, o que pode ser feito pessoalmente pelo consumidor, e não a investigar o paradeiro dos cheques devolvidos. “Sem contar que o valor cobrado pela intermediação pode ser muito maior do que a dívida”, alerta Márcia Cristina Oliveira, técnica da área de Serviços do Procon-SP.

A pressa em resolver a pendência financeira levou Eduardo Bortoluzzi a contratar, em julho de 2001, a Consultan do Brasil Ltda., que cobrou R$ 2.601 pelo serviço – incluía o regaste de 10 cheques devolvidos e a negociação de dívidas com cartões de crédito. Além desse valor, Bortoluzzi teve de depositar na conta de uma outra empresa, a CCR Consultoria e Cobrança Ltda., R$ 3.425,42, para o pagamento dos cheques, mas nem todos foram resgatados. “Em janeiro, a Consultan fechou as portas e eu continuo com restrição em meu nome. Só tive prejuízo”, conta.

O JT não conseguiu localizar ninguém da Consultan. Já a gerente operacional da CCR, Terezinha Vidal, explica que a empresa atuava como central de vendas da Consultan e por isso ambas movimentavam uma mesma conta.

Tendo em vista o descumprimento de contrato, ela diz que foi proposto acordo a Bortoluzzi, recusado por ele. “Agora, esperamos receber notificação da Justiça – de acordo com ela, Bortoluzzi ingressou com ação no Juizado Especial Cível – para decidir o que fazer. Por isso, o processo está estagnado.”

Segundo Bortoluzzi, a proposta foi a exclusão do apontamento mediante novo pagamento de R$ 2.601, com o que ele não concordou. E, pelo fato de a empresa não ter resolvido o caso amigavelmente, o jeito foi contratar advogado, o que lhe trouxe ainda mais ônus.

Busca pelo credor deve começar nos cartórios

Como não se pode limpar o nome sem quitar a dívida, o melhor que o consumidor tem a fazer, segundo Márcia Cristina Oliveira, do Procon, é ele mesmo tentar localizar o credor.

A varredura pode começar no Serviço de Distribuição de Títulos para Protesto (Rua XV de Novembro, 175), que fornece certidões negativas dos dez cartórios da capital. Mas o valor é alto: R$ 55,10. A partir delas, o consumidor poderá saber se o cheque devolvido sem fundos foi protestado e tentar localizar o credor.

A pesquisa pode continuar, ainda, nos órgãos de proteção ao crédito, como SCPC (Ladeira General Carneiro, 79) e Serasa (Libero Badaró, 293). A consulta é gratuita e pode ser feita mediante a apresentação de CPF e mais um documento com foto.

Se o cheque não foi protestado, porém, o consumidor tem ainda uma chance: tendo em vista que o banco deve manter à disposição do emitente, pelo tempo em que seu nome configurar do CCF, cópia do cheque recusado, conforme a Circular nº 9.898 do BC, o consumidor pode pedir a sua microfilmagem à instituição financeira e saber quem foi a última pessoa que tentou descontá-lo. Mas atenção: é obrigação tanto do banco quanto dos órgãos de proteção ao crédito avisá-lo de que seu nome consta das “listas negras”. “Essa é uma exigência do Código de Defesa do Consumidor (CDC), artigo 43”, explica Robson Xavier de Araújo, da De Rosa, Siqueira Advogados. Assim, essas instituições devem disponibilizar ao consumidor informações sobre quem encaminhou o seu nome aos cadastros de maus pagadores para que ele possa regularizar o débito.

Com relação ao prazo que o nome do consumidor deve configurar nesses cadastros há controvérsias. Na opinião de Danton Ramos Neto, da Proconsumer, embora o BC e o CDC prevejam o tempo de 5 anos, o Novo Código Civil é que deve ser aplicado. “Por ele, prescreve em 3 anos a pretensão para haver o pagamento de título de crédito, e o cheque é justamente um título de crédito”, opina.

Caso o consumidor decida contratar empresas de reabilitação de crédito, a dica é obter referência de seus serviços com pessoas conhecidas. Além disso, deve exigir que tudo o que for combinado verbalmente conste do contrato – serviço a ser executado, preço, forma de pagamento, taxas de cartório, bancos, etc.

Lembra Daniel Manucci, da Abrascon, que, se não lhe for dada a possibilidade de conhecimento prévio do contrato, o consumidor não fica obrigado a ele.
“Nesses casos, o consumidor deve pedir a devolução dos valores pagos, corrigidos, podendo para tanto se valer do Juizado Especial Cível.”

domingo, 11 de dezembro de 2011

PROCESSO ADMINISTRATIVO

Presença obrigatória de advogado no processo administrativo disciplinar:
breves anotações à Súmula nº 343 do STJ
  1. CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS

                        O Superior Tribunal de Justiça aprovou, no último dia 14 de setembro, o enunciado nº 343 da súmula da jurisprudência predominante na Terceira Seção daquela Corte (órgão regimentalmente incumbido de analisar a maioria das questões envolvendo servidores públicos). A Súmula terá, quando publicada, a seguinte redação: "é obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar".

                       Tal entendimento, como é óbvio, já era pacífico na Terceira Seção. Porém, agora sumulado, cristaliza-se mais ainda como jurisprudência predominante. O acórdão paradigma, na Terceira Seção (havia outros precedentes nas Turmas e na própria Seção, mas foi esse Acórdão que firmou a jurisprudência), foi o MS 10.837/DF, Relator Ministro Paulo Galotti, Relatora para o Acórdão Ministra Laurita Vaz, DJ de 13.11.2006, assim ementado:

"CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO DISCIPLINAR. DEFESA TÉCNICA CONSTITUÍDA APENAS NA FASE FINAL DO PROCEDIMENTO. INSTRUÇÃO REALIZADA SEM A PRESENÇA DO ACUSADO. INEXISTÊNCIA DE NOMEAÇÃO DE DEFENSOR DATIVO. PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL INOBSERVADOS. DIREITO LÍQUIDO E CERTO EVIDENCIADO.
1. Apesar de não haver qualquer disposição legal que determine a nomeação de defensor dativo para o acompanhamento das oitivas de testemunhas e demais diligências, no caso de o acusado não comparecer aos respectivos atos, tampouco seu advogado constituído – como existe no âmbito do processo penal –, não se pode vislumbrar a formação de uma relação jurídica válida sem a presença, ainda que meramente potencial, da defesa técnica.
2. A constituição de advogado ou de defensor dativo é, também no âmbito do processo disciplinar, elementar à essência da garantia constitucional do direito à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
3. O princípio da ampla defesa no processo administrativo disciplinar se materializa, nesse particular, não apenas com a oportunização ao acusado de fazer-se representar por advogado legalmente constituído desde a instauração do processo, mas com a efetiva constituição de defensor durante todo o seu desenvolvimento, garantia que não foi devidamente observada pela Autoridade Impetrada, a evidenciar a existência de direito líquido e certo a ser amparado pela via mandamental. Precedentes.
4. Mandado de segurança concedido para declarar a nulidade do processo administrativo desde o início da fase instrutória e, por conseqüência, da penalidade aplicada.".
                   
     No presente artigo, buscaremos delimitar o alcance dessa Súmula, bem como definir quais as conseqüências dela advindas para a prática do processo administrativo disciplinar.

2. ÂMBITO DE APLICAÇÃO DA SÚMULA: PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR EM SENTIDO ESTRITO OU EM SENTIDO LATO?
                         Costuma-se utilizar a expressão "processo administrativo disciplinar" em dois sentidos: um, amplo, constitui gênero do qual são espécies a sindicância e o processo administrativo disciplinar propriamente dito, ou em sentido estrito (PAD). Nesse sentido, a própria Lei nº 8.112/90 (que estatui o regime jurídico dos servidores públicos da União, autarquias e fundações públicas federais) denomina o Título V como "Processo Administrativo Disciplinar", para nessa parte tratar tanto da sindicância (arts. 143 a 146) quanto do processo (administrativo também, por óbvio) disciplinar (PAD), nos arts. 148 a 182.
                        Resta, então, a pergunta: a dicção da súmula, ao se referir a processo administrativo disciplinar, utilizou a expressão em sentido amplo ou restrito? A depender da resposta dada a essa questão, deve-se exigir ou não a presença do advogado também na fase de sindicância.
                        Primeiramente, cabe uma rápida explanação sobre o que seja a sindicância. É tradicional estabelecer uma analogia entre sindicância/processo disciplinar e inquérito policial/ação penal [01]. Segundo essa comparação, a sindicância serviria para coletar dados preliminares, necessários à instauração do processo propriamente dito. Aliás, seria, justamente por isso, dispensável, assim como ocorre com o IPL em relação ao processo penal. As semelhanças, porém, param por aqui.
                        Ocorre que, no sistema adotado pela Lei nº 8.112/90 (e copiado pelas legislações estaduais e municipais), a sindicância não se resume a mero procedimento preliminar de instrução. Ao contrário, a lei é clara ao se referir, no art. 145, II, que da sindicância podem resultar sanções mais leves (advertência e suspensão de até 30 dias). Logo se percebe, portanto, que esta também é uma modalidade de processo administrativo, tanto que dela podem resultar punições para o servidor.
                         É justamente por isso que defendemos a aplicação do princípio da ampla defesa e do contraditório também à fase de sindicância. Em outra oportunidade, aliás, já anotamos o seguinte:
 "A sindicância tem duplo papel no processo disciplinar: a) instrumento preliminar de apuração de faltas mais graves; b) instrumento de apuração e punição de faltas mais leves. Só daqui já se vê que da sindicância podem resultar sanções, motivo pelo qual se deve respeitar à risca a ampla defesa do sindicado" [02].
                        Nesse sentido, a obrigatoriedade da presença do advogado deve ser (via de regra) estendida à sindicância, interpretando-se a expressão "processo administrativo disciplinar" contida na Súmula nº 343 em sentido amplo, para abarcar tanto a sindicância quanto o processo disciplinar em sentido estrito (PAD).
                        Em defesa desse ponto de vista já se pronunciou o próprio STJ:
  "CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SINDICÂNCIA. PENA DE ADVERTÊNCIA APLICADA. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. NÃO-OBSERVÂNCIA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO EVIDENCIADO.
1. Conquanto totalmente desnecessária, na espécie, a instauração de processo disciplinar para a apuração da infração imputada, tendo em vista a pena cominada (advertência), o processo de sindicância, desde que utilizado como meio único para a apuração e aplicação de penalidades disciplinares, deve, obrigatoriamente, observar os princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
2. Não se pode conceber, em pleno Estado Democrático de Direito, como suficiente para ensejar a imposição de qualquer penalidade (mesmo a mais branda) – em face das garantias constitucionais –, a simples oitiva do servidor.
3. Tem-se por nulo o ato atacado desde o início, já que nem ao menos foi concedido à Recorrente, que sequer teve ciência da própria acusação, o direito de apresentar defesa escrita, impossibilitando a plena realização do contraditório e da ampla defesa, francamente mitigados pelo disposto na Lei de Organização Judiciária local.
4. Recurso conhecido e provido para determinar a anulação do processo de sindicância ab initio, bem como da penalidade aplicada." [03].
                        Dos próprios julgados do STJ, portanto, se colhe a melhor interpretação da súmula, incluindo no âmbito de aplicação da obrigatoriedade de presença do advogado também a fase da sindicância, desde que dela possa resultar punição. A ressalva final faz sentido porque, também segundo a jurisprudência daquela Corte de Superposição, quando a sindicância se configurar como mero procedimento de investigação preliminar (faltas puníveis somente por meio de PAD), desnecessária é a ampla defesa do acusado, pois haverá fase a isso destinada quando da instauração do processo propriamente dito. Nesse sentido, "Na sindicância, não se exige observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa quando, configurando mera fase inquisitorial, precede ao processo administrativo disciplinar." [04].

3. DEFENSOR DATIVO E OBRIGATORIEDADE DE ADVOGADO
                         A jurisprudência na qual se baseou a Terceira Seção do STJ para editar a Súmula nº 343 sempre exigiu a presença de advogado ou de defensor dativo. Vejam-se, a respeito, alguns julgados:
 "O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que, em observância ao princípio da ampla defesa, é indispensável a presença de advogado ou de defensor dativo realizando a defesa de acusado em processo administrativo disciplinar, inclusive na fase instrutória." [05].
 "A Terceira Seção desta Corte, no julgamento do Mandado de Segurança nº 10.837/DF, em 28/6/2006, Relatora p/ acórdão a Ministra Laurita Vaz, ratificou o entendimento de que, não obstante a falta de expressa determinação no texto da Lei nº 8.112/90, é indispensável a presença de advogado ou de defensor dativo na fase instrutória do processo administrativo disciplinar." [06].
                        Ora, como se percebe da própria redação das ementas, a presença de advogado não era considerada imprescindível, pois também se considerava legítima a defesa exercida por defensor dativo – que, segundo a lei e a própria jurisprudência, não precisa professar a advocacia. Basta se tratar de servidor efetivo (não se exige que seja estável) ocupante de cargo de nível igual ou superior ao do acusado ou com nível de escolaridade também igual ou superior (art. 164, §2º, da Lei nº 8.112/90, na redação dada pela Lei nº 9.527/97).
                        Logo se vê, portanto, o primeiro defeito na redação da súmula, que disse mais do que queria dizer (dixit plus quam voluit) [07]: a presença do advogado não é obrigatória em todos os casos, não é imprescindível, uma vez que a defesa pode ser levada a cabo por defensor dativo. Assim, melhor teria andado o STJ se a redação fosse: "é obrigatória a presença de advogado ou defensor dativo em todas as fases do processo administrativo disciplinar".

4. FASES DO PROCESSO DISCIPLINAR
                         O processo administrativo disciplinar propriamente dito (PAD) se compõe de três fases distintas. Segundo o art. 151 da Lei nº 8.112/90:
  "O processo disciplinar se desenvolve nas seguintes fases:
  I – instauração, coma publicação do ato que constituir a comissão;
 II – inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório;
 III – julgamento.".
                        A Súmula nº 343 é bastante clara, ao exigir a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar. Também aqui, no entanto, é necessário ter calma ao fixar o significado mais adequado ao referido enunciado.
                        Primeiramente, com base no que já afirmamos quanto à necessidade de ampla defesa também na sindicância, em todas as fases desse procedimento se deve cumprir tal exigência. Acontece, todavia, que a sindicância é, por natureza, menos formal que o processo disciplinar propriamente dito, tanto assim que a lei sequer enumera as fases em que se desenrola.
                        Em segundo lugar, é óbvio que a exigência de acompanhamento do servidor por advogado só existe depois da instauração. Apesar de ser esta uma fase do processo disciplinar, é simplesmente impossível estipular como requisito de validade desse ato a presença de advogado constituído ou de defensor dativo.
                        Com efeito, a instauração "é a primeira fase do processo, dando-lhe início, e consiste na publicação do ato que constitui a comissão (designa os membros e o presidente). (...) A partir daqui começam a correr os prazos a que se reporta o art. 152." [08]. Logo, sendo a instauração o ato inicial do processo, é a partir dela que se deve exigir a defesa técnica, a ser exercida por advogado ou defensor dativo.
                        A sindicância, porém, não possui a fase de instauração, pelo simples fato de que não é obrigatoriamente conduzida por uma comissão. Assim, a instauração dá lugar a um ato bastante semelhante, a abertura [09], a partir do qual se deve exigir a presença de defesa técnica do acusado.
                        Há mais, porém. Além dos procedimentos ordinários (sindicância e PAD), a Lei nº 8.112/90 prevê dois procedimentos sumários, um para apuração de abandono de cargo e inassiduidade habitual (art. 140), outro para averiguação de acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções (art. 133).
                        Quanto ao processo para apuração de abandono de cargo ou inassiduidade habitual, nada há de novo. Como o início também se dá pela publicação da portaria de instauração, é a partir daí que se deve cumprir a exigência de presença do advogado.
                        A questão é menos simples, todavia, no procedimento de apuração de acumulação ilegal de cargos. Nesses casos, o processo se inicia com a instauração, mas existe uma fase prévia, consistente na notificação o para que o servidor opte, em dez dias, por um dos dois cargos, empregos ou funções (art. 133, caput). Somente se decorrido in albis tal prazo é que se procederá à instauração do processo.
                        Entendemos que também aqui a presença do advogado somente será imprescindível a partir da instauração do processo. É que a opção por um dos cargos não é um ato de defesa, mas uma simples decisão que cabe ao servidor. Ademais, a opção pode ser feita até mesmo depois do prazo de dez dias, pois, de acordo com o §5º do referido art. 133, "A opção pelo servidor até o último dia de prazo para defesa configurará sua boa-fé, hipótese em que se converterá automaticamente em pedido de exoneração do outro cargo" [10].
                          Existe ainda mais um problema por resolver. A Súmula 343 exige a presença do advogado em todas as fases do processo disciplinar, exigência que fixamos ser exigível a partir da instauração. Entretanto, como fazer com relação à revelia, quando deve ser nomeado defensor dativo? Ora, sabe-se que a fase de instrução se compõe de indiciação, defesa e relatório. É na fase de indiciação que se produzem as provas de acusação, até para que o servidor possa contraditá-las na fase seguinte, de defesa.
                          Ocorre que, de acordo com o art. 164, §2º, da Lei nº 8.112/90, eventual defensor dativo só deve ser nomeado em caso de revelia, isto é, caso o servidor não apresente defesa no prazo legal. Por óbvio, a não apresentação de defesa só pode ser verificada após a fase de indiciação, o que significa que a produção das provas acusatórias foi feita sem a presença de defensor constituído ou dativo. Como compatibilizar tal situação com a exigência da Súmula 343?
                        Vemos somente duas soluções possíveis: a) caso o servidor, após instaurado o processo, não constitua defensor, a autoridade que instaurou o processo deverá nomear, desde já, defensor dativo; ou b) caso o servidor não apresente defesa, a declaração de revelia, além de devolver os prazos de defesa (art. 164, §1º), também determinará a repetição de todas as provas colhidas na fase anterior à defesa, caso se trate de material probatório que não possa ser contraditado a posteriori (prova testemunhal, principalmente).
                        Vê-se de plano que apenas a primeira solução é adequada; a segunda feriria frontalmente os princípios da eficiência, da celeridade processual e da razoabilidade. Com isso, a Súmula 343 tornou letra morta o art. 164, §2º, que exige a nomeação do defensor dativo apenas em caso de revelia. Agora, se quiser cumprir o que determina o enunciado do STJ, a Administração terá que se antecipar, designando defensor dativo antes mesmo de ofertar ao servidor a oportunidade de defesa.

5. CONSEQÜÊNCIAS DA AUSÊNCIA DE ACOMPANHAMENTO POR ADVOGADO
                         Caso o servidor não seja acompanhado por advogado constituído ou defensor dativo, teremos, a par do que dispõe a Súmula 343, ausência de defesa, causa de nulidade do processo disciplinar, nos termos do art. 169. Portanto, a autoridade ou a comissão de processo devem declarar de ofício tal defeito processual (Lei de Processo Administrativo, art. 53, e Súmula nº 473 do STF), providenciando a constituição de nova comissão (em caso de vício insanável). Porém, a Lei nº 9.784/99 (Lei de Processo Administrativo), aplicável subsidiariamente ao processo disciplinar (art. 69), prevê a possibilidade de convalidação dos atos defeituosos, desde que se trate de vício sanável (art. 55).
                          A jurisprudência do STJ parece acolher tal entendimento, na medida em que considera a ausência de acompanhamento por advogado uma nulidade relativa, sujeita à comprovação de efetivo prejuízo para a defesa:
  "(...) 3. O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que, em observância ao princípio da ampla defesa, é indispensável a presença de advogado ou de defensor dativo realizando a defesa de acusado em processo administrativo disciplinar, inclusive na fase instrutória.
4. No caso, todavia, a impetrante, que foi notificada a respeito das oitivas das testemunhas, após o indiciamento, constituiu advogado que apresentou defesa escrita, na qual não alegou cerceamento de defesa ou vício na formação das provas. Manifestou-se sobre todo o conjunto probatório, refutou os fatos imputados e requereu diligências, pelo que não houve demonstração de efetivo prejuízo para a defesa." [11].
 "Em observância ao princípio da ampla defesa, é indispensável a presença de advogado ou defensor dativo durante toda a fase instrutória em processo disciplinar. No caso, embora o impetrante tenha comparecido em parte das audiências de oitiva de testemunhas desacompanhado de defensor dativo ou de advogado, mostra-se desnecessária a anulação do processo, complexo e extenso, à míngua de demonstração de efetivo prejuízo e considerando que a comissão processante formou convicção com fundamento em outros elementos probatórios, inclusive de natureza documental, não sendo as testemunhas as únicas a fundamentarem sua conclusão." [12].
                         Assim, pode-se dizer que a ausência de defesa técnica no processo administrativo disciplinar é causa de nulidade, mas relativa, necessitando de demonstração do efetivo prejuízo sofrido pela defesa para, só então, justificar a anulação do processo. Caso contrário, considerar-se-ão convalidados os atos praticados irregularmente, nos termos do art. 55 da Lei de Processo Administrativo.

6. SOBRE A INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL PARA A SÚMULA Nº 343
                        A jurisprudência do STJ, ao exigir a presença de advogado como requisito de validade do processo disciplinar, formou-se à margem da lei nº 8.112/90, que em momento algum faz impõe tal exigência.
                         Claro está que a base positiva para o entendimento do Superior Tribunal se encontra em norma constitucional, mais especificamente naquela que assegura aos acusados em geral "o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (art. 5º, LV). O alcance de tal dispositivo é propositadamente amplo, incluindo até mesmo os litigantes, em processo judicial ou administrativo. Não se discute, por óbvio, a necessidade de oportunizar ao acusado em processo administrativo o contraditório e a ampla defesa, requisitos da própria legitimidade da punição eventualmente aplicada.
                         Porém, há que se atentar para o fato de que a ampla defesa não precisa ser exercida apenas por advogado. A doutrina reconhece que dois pés sustentam a ampla defesa: a defesa técnica e a autodefesa. Tal teoria, porém, foi construída tendo por norte o processo penal, em que as punições eventualmente aplicadas são, por natureza, muito mais graves que as sanções administrativas.
                        Ora, a própria Constituição Federal prevê que o advogado é figura essencial à administração da justiça (art. 133). Ademais, com todo o respeito possível ao mister da advocacia, geralmente não há no processo administrativo elementos que demandem um conhecimento jurídico mais aprofundado, a justificar a intervenção obrigatória do advogado. Além disso, é facultado ao servidor, se assim desejar, constituir causídico para melhor exercer a defesa. Daí a erigir o advogado a interveniente necessário do processo disciplinar é, segundo pensamos, um exagero. Tanto é assim que o art. 156, caput, da Lei nº 8.112/90 atribui ao servidor o direito de acompanhar o processo, pessoalmente ou por intermédio de procurador.
                        É claro que, hoje, se reconhece ao juiz um grande poder criativo, na medida em que a interpretação passa a ser considerada fase da própria criação das normas jurídicas [13], mas não se pode chegar ao ponto de legitimar uma discricionariedade judicial, ou a imposição pelo Judiciário de obrigações que extrapolam as estabelecidas em lei.
                        Por todos esses motivos, consideramos inconveniente da Súmula nº 343, recentemente editada pelo STJ, como já discordávamos da jurisprudência firmada naquela Corte, agora apenas sumulada [14].
                        Referido enunciado, é verdade, não ostenta eficácia vinculante. Na prática, porém, deverá ser respeitado à risca pela Administração, até mesmo em atenção aos princípios da eficiência, economicidade e moralidade (boa-fé objetiva). Como se trata de questão de fundo constitucional, mas diretamente vinculada à interpretação de lei ordinária, a tendência é que venha a se exaurir realmente no Superior Tribunal de Justiça. Dificilmente o STF aceitará analisar tais fundamentos, por se tratar de eventual ofensa reflexa à Constituição, alegação não conhecida em sede de recurso extraordinário.
                          Por último, ressalte-se que mantemos nosso íntimo convencimento a respeito da não obrigatoriedade da presença do advogado no processo disciplinar – embora, na prática, seja forçoso aceitar o entendimento agora sumulado pelo STJ.
                         Ademais, mesmo em se tratando de um exagero, o é em benefício da defesa.
                        Dos males e menor.

7. REFERÊNCIAS
          CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Lei nº 8.112/90 Comentada Artigo por Artigo. Brasília: João Trindade Cavalcante Filho, 2007.
          COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.
          GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2004.
          MATTOS. Mauro Roberto Gomes de. Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2007.
          MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2005.
          MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2004.
          TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2003.


Elaborado em 09.2007, por João Trindade Cavalcante Filho, técnico administrativo da Procuradoria Geral da República, lotado no gabinete do Subprocurador-Geral da República Eitel Santiago (área criminal/STJ), coordenador e professor de Direito Constitucional e Administrativo do Curso Preparatório para Concursos e de Capacitação para Servidores, Estagiários e Terceirizados da Procuradoria Geral da República, ex-professor de Direito Penal e Legislação Aplicada ao MPU do Curso Preparatório para Concursos da Escola Superior do Ministério Público da União, ex-assessor jurídico da Corregedoria-Geral do Ministério Público Federal, bacharelando em Direito do Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB)